O PROCESSO EDUCATIVO DOS PROJETOS ALTERNATIVOS COMUNITÁRIOS DA CÁRITAS

 

Área temática: Educação

André Ricardo de Souza, USP, andsouza@usp.br

 

Resumo: A Cáritas é um organismo da Igreja Católica que apóia iniciativas populares, sobretudo de geração de trabalho e renda, chamadas PACs – Projetos Alternativos Comunitários. Os PACs estão presentes e vários estados do país, compondo aquilo que a Cáritas chama de uma rede de Economia Popular Solidária. Numa perspectiva de “caridade libertadora”, a despeito das contradições internas da igreja, essas unidades comunitárias vêm exercendo um considerável papel educativo. Seus integrantes gradativamente substituem a passividade de cunho assistencialista pela busca de autonomia, através da participação nos fóruns e reuniões do movimento da economia solidária.

Palavras-chave: Projetos Alternativos Comunitários, Cáritas Brasileira, Igreja Católica, Economia Popular Solidária.


Origem e desenvolvimento da Cáritas Brasileira

A Cáritas é um organismo da Igreja Católica presente em duzentos países e territórios, na forma de uma rede com nome de Cáritas Internationalis, sede no Vaticano e origem em 1897. Esta rede está subdividida em sete regiões: América Latina e Caribe, África, Europa, Oceania, Ásia, América do Norte e a chamada MONA (Oriente Médio e Norte da África). Nessas diversas partes do globo, a Cáritas costuma agir em parceria com organismos nacionais e internacionais, com enfoque na questão da defesa dos direitos humanos e numa perspectiva ecumênica. Ela detém o “status consultivo geral” atribuído pelo Conselho Socioeconômico da ONU (Organizações das Nações Unidas).

A chamada Cáritas Brasileira foi fundada em doze de novembro de 1956 e é reconhecida como entidade de utilidade pública federal, o que lhe permite fazer convênios com instâncias de governo.

Nos anos de 1970, contexto de proliferação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Cáritas Brasileira ocupou seu espaço no espectro das pastorais sociais, se expandindo e estruturando nacionalmente. Desenvolveu-se a rede de Cáritas Diocesanas, composta por entidades de promoção social filiadas à Cáritas Brasileira. São escritórios de representação que funcionam nas sedes das cúrias diocesanas ou de órgãos de assistência social. Essas entidades são legalmente independentes, isto é, dispõem de personalidade jurídica própria, porém seguem as diretrizes emanadas da CNBB, bem como das instâncias superiores da própria Cáritas.

No congresso de 2003, a Cáritas vivia o momento do “primeiro ano de um governo democrático e popular”, o que implicava bastante expectativa em relação à administração Lula, então recém-empossada. Três meses antes (em julho) havia sido instituído em Brasília, num processo de participação importante da Cáritas, tanto o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, quanto a Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego. Nesse contexto, o II Congresso da Cáritas tematizou prioritariamente o Governo Lula através das seguintes questões levantadas: “Quais as possibilidades de um governo democrático e popular enfrentar ou mudar essa situação? Como qualificar a contribuição da Cáritas no processo de transformação, a partir do seu lugar e enquanto organismo da igreja? Quais as experiências que conhecemos e que apontam para um novo projeto de sociedade? O que elas trazem de novo?”.

No decorrer de sua trajetória, a Cáritas analisou suas ações, de modo a promover uma tipologia ou adjetivação da caridade por ela realizada[1]. Haveria portanto três modelos distintos de intervenção frente ao problema da carência alheia. Num primeiro momento, ela teria se orientado por um modelo de caridade assistencial, caracterizado por um atendimento individualizado às pessoas consideradas necessitadas e cronicamente indefezas.

A Cáritas reconhece o valor do trabalho de assistência imediata às vítimas da pobreza extrema, bem como de outras mazelas humanas, como doença crônica, deficiência física, abandono familiar entre outras. Entretanto ela procura fazer uma distinção entre a assistência social e o chamado assitencialismo. Este último, seria uma forma demagógica utilizada, sobretudo por homens políticos, com interesse em tirar proveito da situação de privação alheia. A Cáritas faz uma veemente condenação moral daquilo que ela classifica como “caridade interesseira”. Tal prática, que seria a outra face do paternalismo, teria provocado a deturpação do modelo assistencial de caridade e a manutenção da ordem conservadora ou o status quo de pessoas e grupos sociais.

O modelo assistencial de caridade efetivamente prevaleceu na Cáritas até 1974, quando terminou o programa de distribuição de alimentos oriundos dos Estados Unidos[2]. O trabalho de assistência continuou posteriormente, porém numa outra chave interpretativa, que é a da promoção humana.

A questão da promoção humana se baseia na valorização da pessoa beneficiada pelo trabalho social, encarada como um sujeito também, não mais apenas como um objeto de assistência. Nesta perspectiva, as pessoas assistidas “não mais recebem o peixe, mas a vara e o aprendizado da pesca”, em outras palavras, “recebem instrumentos para escrever a própria história”.

Neste segundo modelo, que é na verdade intermediário, o compromisso do agente Cáritas é contribuir com as pessoas mais pobres, valorizando-as como pessoas potencialmente ativas, sobretudo através do ensino de algo útil para a melhoria de suas condições de vida. Ainda não são analisadas as causas estruturais da pobreza, O que inevitavelmente conduz a uma interpretação fatalista dos problemas sociais. Entretanto, recorre-se aos documentos do Concílio Vaticano II, aos quais são atribuídos uma convocação da igreja para o trabalho na linha da promoção humana dos marginalizados, em contraposição ao assitencialismo.

Conforme o modelo promocional de caridade adotado pela Cáritas, oferecer bens sem envolver o assistido num processo mais amplo de desenvolvimento social é um desperdício de tempo e de energia. A ênfase é no esforço para a superação da condição de inferioridade do assistido, agindo com ele. Nesta ótica, os conflitos são ainda interpretados como fatores de subdesenvolvimento, não como expressão das contradições estruturais da sociedade capitalista, algo que se faria depois.

A perspectiva promocional inicia a mudança do foco no indivíduo para a comunidade em que ele se insere. No contexto de propagação das CEBs na década de 1970 surgiram diversas ações coletivas em âmbito local (clubes de mãe, hortas coletivas, associações de moradores de bairro etc.), propiciando uma reflexão sobre a questão do desenvolvimento comunitário. No entanto, a Cáritas, bem como os demais segmentos progressistas da igreja no Brasil, vislumbrou a necessidade de avançar ainda mais, numa perspectiva libertadora, considerando a possibilidade de mudanças sociais abrangentes.

O terceiro modelo da Cáritas, caridade libertadora, tem um marco inicial no XI Congresso Latino-americano da entidade, ocorrido em Santo Domingo (República Dominicana), em 1986. Sua definição está num livro considerado importante na trajetória da Cáritas, Mística e metodologia da caridade libertadora (1991), que é resultado de três encontros nacionais promovidos por ela em 1990.

A caridade libertadora se baseia numa outra “mística e espiritualidade” cristã, já totalmente imbuída pelas idéias e valores da Teologia da Libertação. Ela decorre do amadurecimento do sentido da ação social dos agentes Cáritas, num trabalho articulado com as demais pastorais sociais, agora harmonizados numa mesma referência transcendental (Gutieerez, 1971; Casaldáliga & Vigil, 1993).

Nesta terceira concepção de caridade desenvolvida pela Cáritas, foi assimilada uma noção dialética da sociedade, com nítida influência marxista. A partir dessa chave interpretativa, o grande mal social se traduz inequivocamente em pobreza, cujas causas são concretas, bem conhecidas e precisam ser enfrentadas. A pobreza é fruto das estruturas de exploração culturais e sobretudo econômicas, com as quais é preciso romper para que uma real transformação da sociedade seja possível. Com essa consciência formada, as práticas assistenciais e promocionais passam a ser vistas como residuais, pois caso recebam prioridade, nada mais serão do que paliativos.

A inflexão da noção de caridade da Cáritas se deu na esteira das mudanças na igreja latino-americana. As CEBs ganharam legitimidade e força a partir das conferência episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979), em que a chamada pastoral popular foi privilegiada. Militantes católicos passaram a ter maior atuação em organizações sociais, como sindicatos e partidos políticos. Os países latino-americanas gradativamente abandonaram os regimes ditatoriais e a cultura política deles progressivamente mudou. Práticas paternalistas de outrora foram duramente criticadas. Esse processo influenciou significativamente a Cáritas, “passou assimilar tais demandas da sociedade que ansiava por participação e democracia” (Adams, 2001: 119).

A Cáritas se coloca junto com outras entidades pastorais ao lado de movimentos da sociedade civil numa mobilização crescente por direitos cidadãos. Na década de 1980, já no ambiente de abertura democrática após a ditadura militar, os grandes marcos nesse sentido foram as manifestações pelas eleições diretas para a Presidência da República (1984) e os debates sobre a nova Constituição (1988). A caridade libertadora da Cáritas se desenvolveu nesse contexto de mobilizações amplas por cidadania plena, traduzida em direitos civis, sociais e políticos. No rol de reivindicações seriam incluídos, também nos anos de 1990, os direitos econômicos e ambientais, na busca de uma “sociedade economicamente justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”[3].

Todo esse processo de mudança na idéia de caridade desembocou invariavelmente na questão da participação popular na política, fazendo os agentes de pastoral recorerem a uma afirmação do papa Paulo VI: “a política é a mais alta forma de caridade”. De fato, além de caridade libertadora, passou-se também a falar em ´caridade política´. Nesta reflexão da caridade levada para o campo da política, a referência ética e jurídica internacional é a declaração dos direitos humanos. Neste sentido, a Cáritas Brasileira vem participando com as demais pastorais sociais na organização de dois eventos relevantes: a Semana Social da CNBB (desde 1991) e o Grito dos Excluídos (desde 1995). Ao tratar da questão da representação política, teólogos, agentes Cáritas e demais pastorais sociais reforçam o dever, “quase heróico às vezes”, do compromisso com os direitos dos pobres em qualquer circunstância (Comblin, 2005: 207-209).

Os Projetos Alternativos Comunitários

Os Projetos Alternativos Comunitários – PACs são pequenas iniciativas populares, nascidas a partir de apoios financeiros concedidos pela Cáritas. As finalidades latentes são o estímulo à vivência comunitária e à participação nas pastorais e nos movimentos sociais. Os PACs são interpretados pela Cáritas como instrumentos pedagógicos para uma ação social de novo tipo, supostamente não paternalista, nem assistencialista. Eles seriam espécie de “escola” de cidadania, geradora de uma formação tanto profissional, quanto política.

 A partir de uma avaliação ocorrida entre 1992 e 1994, a Cáritas classificou quatro tipos diferentes de PACs: produção de mercadorias; prestação de serviços, apoio a movimentos populares (reivindicação de segmentos específicos) e apoio à ação de sindicatos, sobretudo rurais. A maioria desses grupos comunitários se localiza na zona rural. São formados por agricultores familiares, pequenos proprietários, agregados, arrendatários, meeiros, sem-terra e assentados, todos com prática de agricultura de subsistência e de pequena criação de animais, que muitas vezes não são atendidos por programas governamentais. Nas cidades, há uma gama de atividades, em que prevalece o trabalho artesanal, sobretudo com tecidos (Cáritas Brasileira, 1995; Bertucci, 1995).

Esses projetos comunitários da Cáritas fazem parte de uma estratégia maior de desenvolvimento supostamente integral, que responda a necessidades “econômicas ou materiais, culturais, afetivas, éticas e espirituais do ser humano”. Tal premissa estaria explícita nas encíclicas Gaudiuum et Spes (1965) e Populorum Progressio (1967). A religiosidade dos PACs se manifesta nas rezas em grupo, nas festas devocionais, em que seus integrantes costumam agradecer a Deus pelos resultados de seus trabalhos, além de pedirem forças e condições melhores paras atividades vindouras, sobretudo para as lavouras vingarem. Segundo os agentes Cáritas, ocorre aí uma “espiritualidade libertadora” que motiva para uma mudança de vida, tanto pessoal quanto social (Bertucci & Silva, 2003: 62).

A Cáritas portanto concebe os PACs com objetivos bastante além do ganho econômico de seus membros em si. Para isso, entretanto, ela parte da constatação de que a viabilidade e a eficácia econômica desses projetos é bastante limitada, dada a generalizada baixa qualificação técnica de seus integrantes e sobretudo a escassez de capital. A entidade assume essa deficiência de geração de renda propriamente dita, algo que quando ocorre tem um volume baixo, apenas complementar, ou seja, a maioria de seus membros não consegue garantir subsistência somente com os projetos. Por outro lado, a Cáritas proclama outras duas grandes finalidades dos PACs: o fortalecimento das relações comunitárias e o estímulo à participação de mulheres e jovens em organizações ditas populares.

A origem dos PACs é atribuída à organização crescente das pessoas assistidas pelos programas da Cáritas, na lógica da já predominante caridade libertadora. Os primeiros grupos comunitários teriam sido formados a partir desse impulso dos agentes Cáritas a fim de que eles deixassem de ser dependentes, buscando formas de auto-sustentação. A criação desses projetos se dá portanto a partir de uma generalizada motivação emancipatória. Um marco nesse processo foi o Seminário “O homem e a seca no Nordeste”, realizado, em Fortaleza, em 1981, que teria desencadeado a criação de PACs, como alternativa concreta de sobrevivência, diante da situação de extrema pobreza dos trabalhadores rurais (Bertucci & Silva, 2003: 14).

Secretariados da Cáritas na Região Nordeste foram instituídos nos anos de 1980 já nesse contexto de apoio à criação de projetos comunitários para a garantia de sobrevivência face à miséria no meio rural. Mesmo não provocando redução significativa da pobreza, os projetos nordestinos propiciaram algumas conquistas como elevação de auto-estima e afirmação de seus membros como sujeitos conscientes de direitos.

Entre os anos de 1982 e 83, uma recessão econômica fez crescer bastante o desemprego no Brasil[4]. Nesse contexto, os PACs se proliferaram. No Rio Grande do Sul, os primeiros surgiram em 1983 no interior do estado. Projetos resultantes de articulação com sindicatos de trabalhadores rurais, se desenvolveriam no Pará.

Diante desse quadro apontando a presença de projetos em vários estados, a Cáritas Brasileira teve que se preparar para acompanhá-los a contento. Neste sentido, uma primeira avaliação já havia sido feita, de modo a gerar a publicação Sobrevivência e cidadania: avaliação qualitativa dos projetos alternativos da Cáritas Brasileira (1995). As principais atividades desse trabalho de acompanhamento aos PACs são: assessoria técnica na elaboração inicial dos projetos, reuniões de planejamento e avaliação, visitas periódicos e apoio à comercialização. Entre as dificuldades encontradas se destacam: limitação do número de agentes Cáritas, que em parte fazem trabalho voluntário e em alguns casos têm dificuldade de locomoção até o local onde o desenvolve o projeto.

Entre os PACs urbanos vem crescendo em quantidade e tamanho os projetos de coleta seletiva e reciclagem de resíduos sólidos, considerados lixo. Eles atuam diretamente com pessoas sem domicílio fixo, comumente atendidas pela Pastoral de Rua de grandes cidades brasileiras[5].

Uma questão perpassa os vários tipos de projetos comunitários: a do financiamento. Os fundos de financiamento dos PACs e também de funcionamento da própria estrutura da Cáritas Brasileira, são compostos através das arrecadações da Campanha da Fraternidade (CF) e outras da própria igreja, de doações vindas de colaboradores permanentes e dos aportes oriundos de acordos de cooperação internacional. No trabalho de apoio aos projetos comunitários, a Cáritas procura somar seus próprios recursos com os de outras fontes, sobretudo de instâncias do poder público, de modo a propiciar o desenvolvimento deles. Com essa proposta de trabalho, verificou-se através de um levantamento da própria Cáritas que entre 1995 e 2000, mil e quatro PACs foram apoiados, envolvendo cerca de cinqüenta e sete mil pessoas em atividades produtivas e outras de formação profissional.

A Cáritas ressalta reiteradamente o valor de mobilização social e formação política dos PACs, a despeito dos limitados resultados, do ponto de vista econômico. Argumenta, por exemplo, que eles atuam como considerável instrumento de resistência e fixação dos trabalhadores rurais na terra, “em luta pela reforma agrária junto com a Comissão Pastoral da Terra e o MST”. Entretanto, algo parece mudar nos últimos anos no que se refere à racionalidade econômica aplicada aos projetos comunitários. Após uma profunda reflexão sobre a formação e atuação dos PACs, a Cáritas decidiu dar a eles maior atenção e projeção, cunhando o termo Economia Popular Solidária, que foi assumido como uma de suas Linhas de Ação (linha 4) para o quadriênio 2000-2004.

20 anos de Economia Popular Solidária: a trajetória da Cáritas Brasileira dos PACs à EPS (2003), esse é o livro que sintetiza o processo de desenvolvimento dos projetos comunitários numa perspectiva mais ampla, enquanto parte já de um movimento nacional chamado economia solidária. Ele fornece dados relevantes para a compreensão de como a Cáritas assimilou essa perspectiva de trabalho, assumindo uma nova linha de ação. Através de sua leitura e também de sistemática pesquisa de campo foi possível compreender esse processo.

Até o final dos anos de 1980, os recursos da Cáritas eram repassados aos grupos comunitários sob a forma de fundo perdido, respeitando apenas alguns critérios de organização da própria entidade. A partir de 1989, alguns Secretariados Regionais iniciaram o debate sobre a necessidade de repartição de uma ´responsabilidade financeira´ com os próprios projetos, no sentido de dar sustentação aos fundos de apoio. Essa já era uma preparação para o que viria mais tarde.

 Na década de 1990, com o fim da Guerra Fria, os países do hemisfério norte voltaram suas atenções para o leste europeu e também para os países com intenso fluxo migratório para a Europa. Com isso houve um declínio do volume de recursos da cooperação internacional destinados à América Latina. Entidades internacionais de legitimidade social e renome, como Médicos sem Fronteiras, Greenpeece e Cáritas, passaram a disputar acirradamente os limitados recursos disponíveis. As instituições colaboradoras, por sua vez, passaram a exigir mais e melhores resultados dos recursos aplicados nos países pobres (ABONG, 1996: 2-28).

Nesse contexto, tanto a Cáritas quanto suas entidades parceiras internacionais (Misereor, Zentratstelle, Fur Entrwicklungshilfe, Cordaid, Entraide e Fraternité) passaram a realizar avaliações sistemáticas sobre o desenvolvimento dos PACs. Esses projetos passaram a receber uma outra compreensão, enquanto iniciativas produtivas capazes de propiciar geração de renda a seus membros, desenvolvimento social e auto-sustentabilidade.

A partir de 1996, os Secretariados Regionais apoiados pela Misereor e que dispunham de fundos de financiamento a projetos comunitários, passaram a estabelecer em seus planos trienais critérios rígidos de acesso aos recursos (volume, prazo de reembolso, taxas etc.). Nesse mesmo período, ocorreu no Brasil uma multiplicação das experiências chamadas de micro-crédito. Os critérios de financiamento estabelecidos pelas organizações de cooperação internacional e as perspectivas geradas em torno do micro-crédito em relação às iniciativas de geração de trabalho e renda, resultaram em profundas mudanças nos fundos de apoio aos PACs, geridos pela Cáritas.

Inicialmente, a Cáritas Brasileira concebia os projetos comunitários a partir de uma lógica não mercantil, ou seja, eles deveriam ser apoiados conforme o critério da necessidade das pessoas atendidas, o que contraria as regras de funcionamento do sistema financeiro capitalista. Havia uma perspectiva crítica ao mercado capitalista, ideologicamente bem demarcada. Provém daí a dificuldade em aceitar algumas das novas regras a respeito do gerenciamento dos fundos de apoio. O debate se dava sobretudo sobre as regras de devolução dos recursos tomados pelos projetos comunitários.

O que na década de 1980 era apenas uma preocupação de natureza pedagógica em relação à devolução dos recursos tomados dos fundos, passou a ser uma prática obrigatória e externamente definida. Ou seja, antes se discutia a importância da reposição de recursos para fins do crescimento da responsabilidade, superação do paternalismo e formação de consciência autônoma, agora era preciso obedecer às regras inevitavelmente ditadas de cima para baixo. Os fundos passaram a exigir restituição total do crédito destinado aos projetos produtivos e um porcentual menor para os projetos de infra-estrutura comunitária e social. Com essas diretrizes, os fundos regionais da Cáritas passaram a se chamar Fundo Rotativo Solidário e Fundo de Mini-Projetos (Bertucci & Silva, 2003: 28).

Em função dessa realidade, a Cáritas deu maior importância ao acesso de outros fundos, de diferentes origens (instituições públicas, fundações privadas e campanhas variadas) para apoiar os grupos comunitários. Um documento intitulado Proposta de acordo de transição das relações da Cáritas com a Misereor, elaborado numa reunião nacional em 1999, expressou essa nova condição da Cáritas, estimulando inclusive a participação nos fundos Nacional e Diocesanos de Solidariedade, provenientes das Campanhas da Fraternidade, da CNBB.

De fato, o acesso ao Fundo Nacional de Solidariedade (FNS) da Campanha da Fraternidade partir de 1999, marcou uma nova fase na organização interna da Cáritas, incumbida de gerenciar um volume adicional de recursos.  Entre 1999 e 2000, foram apoiados duzentos e cinqüenta e dois projetos comunitários com os recursos desse fundo. Num levantamento referente aos anos de 1995 a 2000, verificou-se que houve um investimento de aproximadamente sete milhões de reais nos PACs. Registrou-se também nesse período um significativo incremento das atividades produtivas (artesanal, agrícola, pecuária e serviços), com destaque para a agregação de valor aos produtos gerados (beneficiamento da produção, montagem de pequenas fábricas etc.).

Em relação à busca de acesso a recursos públicos, a Cáritas efetivamente se engajou em algumas tarefas, agindo como espécie de representante político dos projetos comunitários e conseqüentemente falando em nome dos interesses deles. Isso se deu através da participação em conselhos de gestão de políticas públicas, como os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, que decidem sobre a aplicação dos recursos do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF).  Esse foi o caso também em relação ao acesso a recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, na questão específica da multiplicação de cisternas, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e do Banco do Nordeste.

Antes de procurar diversificação das fontes de financiamento, a Cáritas já promovia uma reflexão mais aprofundada a respeito dos PACs, o que a levou a concebê-los como parte de algo maior, traduzido no termo Economia Popular Solidária. A expressão se difundiu através de seminários e encontros regionais, que desencadearam a formação de redes de ajuda mútua.

O termo ´popular´ se justifica pela opção de trabalho com os considerados excluídos do mercado de trabalho, em outras palavras, os mais pobres da sociedade. A Cáritas preconiza o uso do termo para que o cooperativismo fomentado por ela não seja confundido com aquele tradicionalmente instalado no país, caracterizado sobretudo pela grande quantidade de membros, numa forma de gestão que não se diferencia de uma grande empresa convencional. O ´popular´ aqui tem uma conotação essencialmente democrática, ideológica e discursivamente construída de “baixo para cima”.

A expressão Economia Popular Solidária se fixou de uma tal forma que a Cáritas elaborou um quadro comparativo dela em relação aos predecessores PACs, pensados aqui de forma isolada e também à oponente economia capitalista. Tal quadro é freqüentemente utilizado em seminários e encontros de formação dos agentes Cáritas e  integrantes de projetos comunitários:

 

 

Aspectos

Economia capitalista

PACs

EPS

Lógica

Acumulação / Lucro

Auto-sustentação comunitária

Ampliação da Qualidade de vida

Relações internas

 Patrão X Empregado

Distribuição Comunitária das Tarefas

Autogestão Cooperativa

Protagonismo

Representações Empresariais

Representações Comunitárias

Organização do Movimento da EPS

Educação

Para a Competitividade /individualista

Párea a Solidariedade Comunitária

Para a Solidariedade em Rede

Projeto de Desenvolvimento

Monopolista predatório do Meio-Ambiente e das Pessoas

Promoção Humana Local

Desenvolvimento Sustentável

Políticas

Excludentes e Compensatórias

Relações comunitárias

Fortalecimento de Redes e de suas Representações

Cadeia produtiva

Rede de competição e exploração monopolística

Subsistência sem articulação

Rede de complementaridade solidária

(Bertucci & Silva, 2003: 70)

Gradativamente, a Cáritas Brasileira faz da economia solidária uma opção importante de trabalho a qual ela se refere cada vez mais, sobrepondo o uso do termo solidariedade ao da caridade. A valorização da questão da reciprocidade entre agente Cáritas e “assistido” pelos programas aí é fundamental. Acredita-se que o debate sobre o tema da autogestão, que é central na proposta da economia solidária, colabore para a descentralização do processo de tomada de decisões na Cáritas, orientado-se cada vez mais pelo princípio da colegialidade. Entretanto, estatutariamente o presidente nacional é sempre um bispo e a entidade é atada organicamente à CNBB. Ou seja, ainda que uma cultura democrática e autogestionária esteja em desenvolvimento, a relação com uma instituição altamente vertical e hierarquizada, cujo poder é cada vez mais centralizado no Vaticano, certamente tem implicações inquietantes. Em meio a essa contradição institucional, o trabalho de apoio aos empreendimentos de economia solidária prossegue.


 

 

Referências Bibliográficas

 

ABONG. 1996. Um olhar sobre as agências. Cadernos ABONG. São Paulo, ABONG, maio, nº 13.

ADAMS, Telmo. 2001. Prática social e formação para a cidadania: Cáritas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, EDIPUCRS.

BERTUCCI, Ademar de Andrade. 1995. A construção do sujeito no contexto dos excluídos: o caso dos Projetos Alternativos Comunitários – PACs da Cáritas BrasileiraDissertação de mestrado em política social. Brasília, UnB.

_____ & SILVA, Roberto Marinho Alves. 2003. 20 anos de economia popular solidária: trajetória da Cáritas Brasileira dos PACs à EPS. Brasília, Cáritas Brasileira.

CÁRITAS BRASILEIRA, 1991. Mística e metodologia da caridade libertadora. São Paulo, Loyola.

_____. 1995. Sobrevivência e cidadania: avaliação qualitativa dos projetos alternativos da Cáritas Brasileira. Brasília, EdUnb.

CASALDÁLIGA, Pedro & VIGIL, José Maria 1993. Espiritualidade da libertação. Petrópolis, Vozes.

COMBLIN, 2005. O caminho: ensaio sobre o seguimento de Jesus. São Paulo, Paulus.

DOIMO, Ana Maria. 1995. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação no Brasil pós-70. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/ANPOCS.

GUTIERREZ, Gustavo. 1971. Teología de la liberación. Lima, CEP.



[1] O próprio nome da entidade, Cáritas, remete à origem latina da palavra caridade. A formulação dessa tipologia é atribuída por alguns agentes de pastoral ao padre José Pegoraro.

[2] Essa doação, originária da organização da Cáritas no Brasil, era intermediada pela Catholic Relief Services, a entidade dos bispos norte-americanos incumbida de liderar um programa chamado Alimentos para a Paz, organizado no contexto da tão criticada política americana da Aliança para o Progresso.

[3] Lema disseminado nos discursos e textos dos agentes Cáritas.