CONTABILIDADE E INCLUSÃO SOCIAL: ANÁLISE DAS DEMANDAS CONTÁBEIS SUSCITADAS PELOS EMPREENDIMENTOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Princípios de Economia Solidária

Mestranda Edir Antonia de Almeida – FEA/USP

Mestrando Flávio José Dantas da Silva – FEA/USP

Prof. Dr. Valmor Slomski – FEA/USP

 

 

RESUMO

A Economia Solidária (ES) é um modo de produção, comercialização e distribuição, baseado na solidariedade e autogestão, recriado pelos trabalhadores como alternativa de superação de desemprego ou subemprego. Com este trabalho objetivou-se estudar as demandas que os empreendimentos da ES remetem à contabilidade, bem como analisar alguns procedimentos contábeis alternativos passíveis de serem aplicados a esses tipos de empreendimentos.  Através de um estudo bibliográfico e posterior análise, concluiu-se que se trata de um novo grupo de usuários, tendo em vista as características dos empreendimentos e perfil dos empreendedores. A autogestão marca registrada da ES, suscita desafios, pois requer novos instrumentos e procedimentos contábeis que sejam ferramentas adequadas à gestão praticada pelos próprios trabalhadores. Enquanto processo educativo remete ao currículo de formação do contador, o desenvolvimento de novos predicados, tais como a sensibilidade social e habilidades de educador. Analisaram-se pesquisas mais recentes de sistemas contábeis alternativos, em que se vislumbrou a possibilidade de adaptação de algumas sistemáticas às peculiaridades dos empreendimentos da ES, na medida que a forma de registro, controle, demonstração e divulgação transcendem ao escopo dos sistemas tradicionais.

 

 

Palavras-chaves: Contabilidade, Autogestão, Economia Solidária.

 

 

 

 

1-     INTRODUÇÃO

O novo cenário sócio-político-econômico, desenhado pela globalização, tem sido marcado por grandes descobertas nas mais diversas áreas de conhecimento como também pelas contradições e agudização das desigualdades sociais.

Essa nova organização econômica tem um forte impacto sobre o mercado de trabalho. O quadro que se apresenta é de aumento de desemprego, subemprego e de desigualdade social. Uma série de políticas compensatórias está sendo implantada, principalmente nos países desenvolvidos, a fim de minimizar as mazelas sociais da globalização. Assim como se desenvolvem no mundo inteiro, alternativas populares à crise do desemprego.  Diversas organizações econômicas constituídas por trabalhadores desempregados, surgem na busca de reinserção no mercado de trabalho e no convívio social. Notadamente, a ES destaca-se enquanto experiência bem-sucedida de geração de emprego e renda. Os empreendimentos solidários  buscam a conciliação entre desenvolvimento econômico e humano, mediante princípios profícuos de solidariedade e cooperação. 

 Nesse cenário, surge um novo campo de estudo da contabilidade. Longe de buscar respostas definitivas, a pretensão deste trabalho é inserir no universo da  contabilidade, o debate e estudo sobre ES. Dessa forma, esta pesquisa objetiva estudar as demandas que esse tipo de organização econômica popular remete à contabilidade, bem como analisar alguns procedimentos contábeis alternativos passíveis de serem aplicados à ES. Através de um estudo bibliográfico e análise posterior, buscam-se identificar elementos que conduzam à elucidação das seguintes questões: a) Quais as demandas contábeis que a ES lança para a contabilidade? b) Os modelos de Informações atuais satisfazem às demandas dos empreendimentos solidários?

Parte-se do pressuposto de que se trata de um novo grupo de usuários, com novas demandas, tendo em vista as especificidades dos empreendimentos e perfil dos empreendedores. Portanto, suscita novas sistemáticas e modelos contábeis que atendam às características peculiares deste grupo.                                             

 

2- METODOLOGIA

O método de pesquisa a ser utilizado, neste trabalho, é a pesquisa bibliográfica. Trata-se do levantamento da bibliografia publicada em livros, revistas, publicações avulsas e impressas escritas.  Conforme definem Marconi e Lakatos (2001), “sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo que foi escrito sobre determinado assunto, com o objetivo de permitir ao cientista o reforço paralelo na análise de suas pesquisas ou manipulação de suas informações”.

As autoras esclarecem que a bibliografia “oferece meios para definir, resolver, não somente problemas já conhecidos, como também explorar novas áreas, onde os problemas ainda não se cristalizaram suficientemente” (LAKATOS apud MANZO, 1971:32)

A revisão bibliográfica permitirá, no primeiro momento, o esclarecimento conceitual da Economia Solidária e seu significado no contexto socioeconômico. Também será feito um estudo sobre os empreendimentos circunscritos na ES, no qual se buscará sua tipificação e caracterização. Em seguida, analisar-se-á a relação entre a contabilidade e a Economia Solidária, mediante a exposição dos instrumentos contábeis disponíveis para a ES.

 Num segundo momento, o estudo bibliográfico sobre pesquisas recentes de novas sistemáticas contábeis, fornecerá meios à análise e discussão das possibilidades de aplicação ao campo da ES, à luz das características dos empreendimentos.

 

 3- REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

  A economia solidária não é uma nova invenção. Os trabalhadores de tempos em tempos reinventam formas alternativas de enfrentamento das crises econômicas e do acirramento da relação capital-trabalho.

 A crise recente que engendrou o ressurgimento da economia solidária, tem como pano de fundo a exclusão social, exacerbada pelas novas estruturas econômicas emergidas do seio da globalização econômica. 

Com o advento da Globalização, conforme Wanderley (2002), as distâncias se reduziram, não havendo barreiras físicas para a informação, “o conhecimento, o intercâmbio cultural os avanços tecnológicos possibilitaram e desvelamento de enigmas antigos das várias áreas de conhecimento, a democracia atingiu a quase maioria dos países e é requisito de legitimidade internacional”.

Entretanto, a globalização tem seu lado reverso. O imperativo da sobrevivência, num mercado altamente competitivo, tem levado as empresas à busca de redução de custo, que, na maioria das vezes, significa corte de postos de trabalho, acarretando exclusão social e desenha um quadro social de pobreza e “apartação social”.

 Em 2000, a organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou o informativo "O emprego no mundo 1998-99", no qual destacava que cerca de 1 bilhão de trabalhadores - aproximadamente um terço da população ativa do mundo - estão desempregados ou subempregados[1] .

Em relação ao Brasil, a Fundação SEADE produziu o informativo, "Análise Anual 98 - Pesquisa de Emprego e Desemprego", o qual mostrava que: 1) a taxa anual média de desemprego total da Região Metropolitana de São Paulo aumentou, entre 1997 e 1998, de 16% para 18,3% da população economicamente ativa (PEA), enquanto que no IBGE a taxa variou de 7,15% para 9,41%; 2) por nível de instrução, verificou-se, entre 1997 e 1998, o crescimento da taxa de desemprego anual média para os indivíduos de todos os níveis de escolaridade.

A exclusão social, também, pode ser observada no quadro abaixo (KLIKSBERG, 2001):

 

Quadro 1- Evolução da distribuição da Renda no Brasil

 

Setor da população

Porcentagem da Renda Nacional

1970

1994

1% mais rico

  8

15

25% mais pobres

16

12

Fonte: The Economist, 29 abr. 1995

 

O quadro mostra o aumento da concentração de renda e desigualdade social. O percentual da renda nacional dos 1% mais ricos quase duplicou no período de 1970 a 1994, enquanto no mesmo período, a renda total dos 25% mais pobres decresceu.

Embora o quadro mais drástico da desigualdade seja a distribuição de renda, Kliksberg (2001) chama a atenção para as outras vertentes, tais como a desigualdade no acesso à saúde e educação.

 

 

 

3.2 - ES no Brasil

Nesse cenário, ressurge a Economia Social. O termo Economia Solidária aparece pela primeira vez no Brasil, em 1993, no livro Economia de Solidariedade e organização popular, organizado por Gadotti, em que o autor chileno Luis Razeto a concebe como: 

Uma formulação teórica de nível científico, elaborada a partir e para dar conta de conjuntos significativos de experiências econômicas -...-, que compartilham alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo, cooperação e autogestão comunitária, que definem uma racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econômicas.

Para o Prof. Singer (2000), a “Economia Solidária  surge como modo de produção e distribuição alternativa, criado e  recriado periodicamente pelos que se encontram  marginalizados do mercado de trabalho”. A ES concilia o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição, com os princípios da socialização desses meios.            

A unidade típica da ES é a cooperativa de produção, cujos princípios são: posse coletiva dos meios de produção pelas pessoas que as utilizam para produzir; gestão democrática da empresa ou por participação direta ou por representação; repartição da receita líquida entre os cooperadores por critérios aprovados após discussões e negociações entre todos; destinação do excedente anual (denominado sobras), também por critérios acertados entre todos os cooperadores. Também são expressões desse movimento as empresas autogestionárias, associações de produtores de diversos ramos de bens e serviços etc.

Na obra Economia Solidária no Brasil, Singer (2000), são relatadas diversas experiências e formas de organização da ES no Brasil, cuja abrangência compreende atividades econômicas, tais como: cooperativas dos mais diversos ramos de atividades; empresas autogestionárias; agências de fomento à ES, sistemas de créditos, redes de projetos comunitários (associações, centros, comitês, etc), feiras solidárias, clubes de trocas e outras experiências alternativas de comércio, habitação e crédito.  

A proliferação dos empreendimentos solidários, no Brasil, muito se deve à forte presença das ONG’s – Organizações Não Governamentais, que eclodiram, principalmente a partir dos anos 80[2].

 

  3.3 - A visão de Empreendedorismo da ES

  O Prof. Singer analisa os caminhos distintos pelos  quais passa uma empresa solidária. Quando uma nova empresa solidária surge, a sua estruturação segue uma lógica diferente. Para começar, os empreendimentos, em geral, nascem em uma comunidade formada por ex-empregados de uma mesma empresa ou companheiros de jornadas estudantis, comunitárias etc.

 Quando a empresa começa a funcionar, os sócios já têm certa prática de autogestão[3], pois recebem treinamento prévio, mas lhes falta a competência específica para operar no ramo de negócio escolhido.  A competência é construída ao longo da vida prática da empresa. Diferentemente do que ocorre na empresa normal, na qual o aprendizado se limita aos integrantes do corpo de executivos, na empresa solidária ele se estende a todos os membros.  

 O empreendedorismo solidário busca o desenvolvimento de todo o grupo, despertando atitudes e habilidades como:

®A valorização social do trabalho humano;

®Os valores da cooperação e da solidariedade.

®Democratização da gestão do trabalho;

®Transparência na gestão

®Conhecimento sobre os segredos da produção;

®Distribuição de renda;

® Conhecimento de mercado, gestão cooperativa, pró-atividade, participação, conhecimento sobre a arte de liderar, de empreender e de administrar o projeto coletivo;

®Trocar a cultura da subordinação pela idéia do apreender a empreender e cooperar;

®Estímulo à criatividade do indivíduo no sentido da estratégica do grupo organizado em cooperação;

®Aceitar riscos desde que sejam moderados e decididos coletivamente;

®Formar “redes de apoio” e parcerias;

®Capacitação e estímulo permanentes;

®Responsabilidade Social;

®Renovar cotidianamente o projeto coletivo;

®Compreender a democracia e a participação como um valor socioeconômico;

São muitos os desafios na busca de modelos de gestão que materializem tais princípios e privilegie a autogestão dos trabalhadores. Nakato (2000) afirma que a implementação destes princípios não se realiza sem a reflexão e participação efetiva dos trabalhadores. Levanta um outro aspecto fundamental para a concretização dos objetivos: a educação.

 

A proposta de educação da entidade leva em conta os trabalhadores, não com uma visão idealizada sobre eles, pois trazem uma cultura predominantemente individualista, centrada numa preocupação com o emprego e o salário e não no trabalho como fonte de criação. Além disso, relacionam-se com um mercado sobre o qual criou-se a imagem de estar separado das questões sociais”.

( NAKATO apud FARIA & NAKATO, 1997)

 

3.4- A Contabilidade e a Economia Solidária

Como se viu, a marca registrada da economia solidária é a administração compartilhada ou autogestão. Apesar dessa peculiaridade, em termos de estrutura formal, assumem a personalidade jurídica de negócios normalmente existentes no meio empreendedor, como por exemplo, cooperativas e sociedades produtivas com diversas atividades diferentes, conforme cita Parra (2002):

 

(...) nas cidades, por sua vez, multiplicam-se as experiências onde os trabalhadores formam empresas, associações ou cooperativas para executar coletivamente ou de forma autônoma a produção de bens ou serviços. Na cooperativa que presta serviços os associados executam um projeto ou uma tarefa qualquer para os contratantes.

 

Não fossem as peculiaridades próprias dos Empreendimentos em Economia Solidária e principalmente seus empreendedores, poder-se-ia dizer que em termos de atendimento contábil nada mais seria necessário, além dos recursos já atualmente disponíveis no escopo da contabilidade das Cooperativas e da contabilidade Societária.

No caso das cooperativas, bastaria atender ao disposto na NBC T 10.8 do Conselho Federal de Contabilidade, que cria definições no tocante a aspectos de escrituração contábil e de estruturação e elaboração das informações em forma de Relatórios e Demonstrações.

Já para as empresas autogestionárias produtivas, constituídas em forma de sociedades, poder-se-ia tomar como referência a contabilidade societária nos moldes previstos na Lei das Sociedades Anônimas 6.404/76. O artigo 177 da referida lei determina que a escrituração deve ser feita seguindo seus preceitos e os princípios de contabilidade geralmente aceitos. O Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações (2003, pág 29), também orienta que o conjunto de informações que deve ser divulgado por uma sociedade...representando sua ‘prestação de contas’ abrange o Relatório de Administração, as Demonstrações Contábeis e as Notas Explicativas...”.

Esse é o aparato contábil disponível atualmente para os empreendimentos solidários, representados, principalmente, pelas cooperativas dos mais diversos segmentos da economia e pelas empresas autogestionárias.

 

4- ANÁLISES E DISCUSSÕES

Ao partir do pressuposto de que os empreendimentos solidários constituem formas específicas de organização e gestão, neste tópico, levantar-se-ão algumas características das demandas suscitadas por estes empreendimentos, assim como são identificados elementos que norteiem a busca de procedimentos contábeis alternativos que atendam às suas especificidades.

 

 4.1- Demandas da ES para a Contabilidade

Quando se depreende que os empreendimentos circunscritos na Economia Solidária são atípicos ou, como antes aventado, têm peculiaridades específicas, principalmente quanto a aspectos atinentes a sua constituição/formação e mais detidamente às características dos empreendedores, lança-se luz sobre os desafios e demandas que os mesmos remetem à contabilidade.

 Não se pode negligenciar que se trata de um grupo diferenciado de usuários e como tal necessita de informações que tangenciam aspectos muitas vezes não coincidentes com outras organizações conhecidas. Cabe à contabilidade identificar essas demandas e em seguida buscar atender às mesmas, desvelando novos processos e modelos de mensuração, demonstração e divulgação e descortinando horizontes ainda não alcançados.

 Sem a pretensão de tentar esgotar as questões aqui levantadas, este trabalho, ao contrário, tem a intenção  de suscitar o debate, iniciar um exercício de reflexão acerca das possíveis demandas da ES e apontar elementos que indiquem caminhos a serem percorridos pela contabilidade a fim de que se ajuste às necessidades da ES.  

O que se pode afirmar, ao se analisar as características dos empreendimentos e empreendedores da ES, é que esse tipo de empreendimento necessita efetivamente, não somente de uma contabilidade própria em relação a aspectos de escrituração, controle, demonstrações, geração, divulgação e análise de informações contábeis, como também quanto a características diferenciais do perfil e formação do contador.

Dessa forma, à luz de suas especificidades, aponta-se para uma nova contabilidade para ES que privilegie:

1.                 Novos modelos de Informações que:

·                    Propiciem a gestão democrática;

·                    Subsidiem a autogestão;

·                    Gerem informações mais próximas da realidade dos empreendimentos/empreendedores;

·                    Produzam indicadores sociais;

·                    Expressem as transações em rede;

·                    Tenham uma linguagem adequada ao tipo de empreendimento/empreendedor.

2. Um novo perfil de contador:

·                    Sensível aos problemas sociais;

·                    Com ampla visão econômica;

·                    Com capacidade gerencial;

·                    Articulador (boas relações humanas);

·                    Educador (“ensine a pescar”);

3. Uma nova Formação:

·                    Multidisciplinar (psicologia, economia, etc)

·                    Novas metodologias de Ensino;

·                    Introdução de novas disciplinas (línguas, cooperativismo, educação popular, etc)

·                    Envolvimento em pesquisa e extensão.

 

4.2- Procedimentos Alternativos

Nesse tópico não se tem a intenção de construir nem indicar um modelo contábil pronto que possa plenamente atender às especificidades anteriormente colocadas. Mas, propõe-se inaugurar no seio do pensamento contábil academicamente estruturado, a idéia e a necessidade de se voltar a atenção para estudos com esse objetivo. Aqui são indicadas algumas alternativas básicas em estado bem indefinido ainda, mas que se instrumentalizam para reflexão, neste momento. Conjectura-se que esses modelos, dadas suas características, se profundamente estudados e testados, poderão ser aplicados no segmento da Economia Solidária.

a)Contabilidade Orçamentária

 A aplicação da Contabilidade Orçamentária no setor privado é objeto de estudo do docente da FEA/USP, Prof. Dr. Valmor Slomski. Embora ainda em estágio embrionário, a pesquisa aponta para a possibilidade de utilização desse procedimento pela ES.  Como bem define Slomski (2003), a contabilidade baseada no sistema orçamentário “evidencia as origens dos recursos e suas aplicações; demonstraos créditos orçamentários vigentes, a despesa orçamentária empenhada e a despesa orçamentária realizada, à conta dos créditos orçamentários, e, ainda, as dotações orçamentárias disponíveis”.

Da forma como se estrutura, atende a aspectos de escrituração, demonstração, análise e informações dos empreendimentos da ES, desde a origem do planejamento das atividades do negócio até a concretização ou realização dessas atividades. Pode ser dada ênfase ao estudo, análise e divulgação das variações (orçado versus realizado), com possibilidade de indicações de correção de rumos quando necessário, identificando e valorizando a execução das atividades por área de responsabilidade.

A exigência da elaboração e contabilização do orçamento em entidades da ES, além do atendimento aos aspectos normais do negócio, como planejamento e gerenciamento, também teria a natureza educadora, uma vez que requer o envolvimento de todos e o comprometimento das diversas áreas com o resultado. É sempre importante lembrar que além de executores das diversas atividades do empreendimento, os envolvidos no processo são também seus proprietários (investidores).

A sistemática de funcionamento contábil deve estar fundamentada a partir de uma planificação contábil, que, aqui, tomando como embrião estudos atualmente em elaboração pelo Prof. Dr. Valmor Slomski da FEA/USP, com vistas ao desenvolvimento de uma teoria e de um sistema de contabilidade orçamentária para entidades do terceiro setor, sugere-se que o Plano de Contas tenha a seguinte estruturação:

GRUPOS

TÍTULO DO GRUPO

1

ATIVO

2

PASSIVO

3

PATRIMÔNIO SOCIAL

4

CONTAS DE RESULTADO PATRIMONIAL DO EXERCÍCIO

5

RECEITAS  ORÇAMENTÁRIAS

5.1

RECEITAS  ORDINÁRIAS

5.2

RECEITAS DE PROJETOS

6

DESPESAS ORÇAMENTÁRIAS

6.1

ADMINISTRAÇÃO SUPERIOR

6.2

ADMINISTRAÇÃO GERAL

6.3

ADMINISTRAÇÃO DE INVESTIMENTOS

6.4

ADMINISTRAÇÃO DE PROJETOS

9.9

RESERVA DE CONTINGÊNCIA

Vale a observação de que essa proposta de planificação tem utilidade para registro do orçamento, como também para a realização das atividades da organização, sempre segregadas e registradas por centros de responsabilidades, de natureza estrutural e operacional, conforme a necessidade. Atende, também, a aspectos de controle e gerenciamento, uma vez que torna factível o acompanhamento e execução do orçamento proposto pelo coletivo dos trabalhadores da entidade.

 Dessa forma, as evidências indicam que  esse é um instrumento passível de utilização pela ES, tendo em vista que propicia a gestão democrática e possibilita a socialização do controle de todo o processo de gestão.  

b) Apuração Gerencial do Resultado Econômico

A mensuração do resultado econômico, conforme o Prof. Dr. Slomski (2003): “Fundamenta-se no conceito de custo de oportunidade, o qual permite mensurar os serviços prestados (receita econômica), o trabalho voluntário e outras despesas incorridas e assumidas por terceiro”.

Esse pode ser um importante instrumento gerencial para ES, à medida que leva em conta fatores desconsiderados pela contabilidade tradicional, tais como o custo de oportunidade.

            Sabe-se que, via de regra, os empreendimentos solidários não prescindem das entidades de apoio, cuja estrutura colocada à sua disposição compreende recursos materiais, humanos e financeiros. Essas contribuições são realizadas de maneira voluntária até que o negócio se sustente. Dessa forma, esses valores não computados, como assessorias contábeis, administrativas, financeira, tecnológica, poderiam compor a mensuração do resultado econômico da entidade, tal como já acontece nas entidades do terceiro setor.

            Transcendendo o próprio empreendimento, poder-se-ia pensar em mensurações ou indicadores sociais que levassem em conta o custo de oportunidade de várias atividades realizadas pela empresa, substituindo ações sociais que caberiam ao poder público. Apenas para exemplificar, poder-se-ia levantar o custo social da inserção do desempregado no mercado, ou seja, a quantificação dos benefícios que o Estado e a Sociedade obtêm com esse empreendimento, somente pela oferta de postos de trabalho.  Da mesma forma poderia ser feito com todos os benefícios alcançados pelo empreendimento, tais como a educação dos trabalhadores, provimento de plano de saúde, ações de preservação do meio ambiente, projetos envolvendo a comunidade local, etc.

  Enfim, esse mecanismo gerencial se bem explorado pode ser um instrumento de expressão da dinâmica econômica e social da economia solidária.

 

5- CONCLUSÃO

 O passeio pelos diversos tópicos do presente trabalho, leva a uma primeira certeza e afirmação: a de que Economia Solidária é um Tópico Contemporâneo em Contabilidade.

 Quando se percorre a bibliografia sobre ES, percebe-se que é um movimento consolidado e, tendo em vista sua relevância social, tornou-se programa de governo e objeto de políticas públicas nacionais.

 A Economia Solidária tem uma organização nacional e conta com apoio das mais variadas entidades, inclusive universidades que desenvolvem um trabalho multidisciplinar, envolvendo várias áreas do conhecimento.

Analisando o arcabouço contábil disponível, compreende-se que os empreendimentos possuem formalmente um tratamento contábil. Entretanto, a questão que se coloca é se esses satisfazem plenamente as necessidades informacionais dos empreendimentos da ES.

Conclui-se que se trata de um novo grupo de usuários, tendo em vista a característica dos empreendimentos e perfil dos empreendedores. A autogestão marca registrada dos empreendimentos solidários, suscita desafios para a contabilidade, pois requer novos instrumentos e procedimentos contábeis que sejam ferramentas adequadas à gestão praticada pelos próprios  trabalhadores. Ao mesmo tempo, a autogestão caracteriza-se como um processo educativo dos trabalhadores, remetendo ao currículo de formação do contador, o desenvolvimento de novos predicados tais como a sensibilidade social e habilidade de educador.                                                

 Para consubstanciar a discussão, realizou-se um exercício de reflexão, através de um breve mergulho sobre estudos mais recentes de sistemas contábeis, alguns em estágio embrionário. Analisou-se a Contabilidade Orçamentária e o recurso gerencial da Mensuração do Resultado Econômico.

 Presume-se a possibilidade de adaptação das sistemáticas indicadas às peculiaridades dos empreendimentos da ES, uma vez que se vislumbra novas formas de registro, controle, demonstração e divulgação das informações que transcendam ao escopo da contabilidade tradicional.

 Vale ressaltar que essas não são respostas definitivas ao problema, uma vez que as perguntas sobre contabilidade para a ES ainda nem estão plenamente identificadas, faltando muitos elementos empíricos e teóricos para fazê-lo.

 A contribuição maior deste trabalho foi inserir a pesquisa contábil nesse universo, tendo em vista que sempre a contabilidade envidou esforços em estudos e práticas que permitiram a alavancagem econômica de diversos setores.

 Nesse momento da história, de crise do trabalho e de aumento da pobreza, a contabilidade necessita perceber e atender às demandas desse importante segmento, o qual tem promovido a inclusão social de vários trabalhadores desempregados.

 Portanto, este assunto: Contabilidade para a Economia Solidária é um vasto campo de pesquisa. Abraçá-lo significa incorporar cidadania e responsabilidade social.

 

            6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KLIKSBERG, Bernardo. Desigualdade na América Latina: O debate adiado. Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela.2. ed.São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2001.

MARCONI, Maria de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do Trabalho Científico.6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

NASCIMENTO, Cláudio. A  autogestão  e o “novo cooperativismo”. Secretaria Nacional de Economia Solidária. Disponível em site: http://www.tem.gov.br/empregador/economia solidária. Acesso em : 07/07/2005

NBC T 10.8, Conselho Federal de Contabilidade. Disponível em site: www.cfc.org.br. Acessado em  07/07/2003.

PARRA, Henrique Soque Martins. Liberdade e Necessidade: empresas de trabalhadores autogeridas e a construção sócio-política da economia, Tese, 2003 – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.        

RAZETO, L. Economia de Solidariedade e Organização Popular. In: Gadotti, M. & Gutierrez, F (orgs.). Educação Comunitária e economia popular. São Paulo: Cortez, 1993.

SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (orgs). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.

________. Globalização e Desemprego: Diagnóstico e Alternativas. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2001.

SLOMSKI, Valmor. Manual de contabilidade pública: um enfoque na contabilidade municipal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

SPERANDIO, Ana Maria Girotti (org.).O Processo de Construção da Rede de Municípios Potencialmente Saudáveis. Vol.1, Campinas, SP: Unicamp: Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, 2003

WANDERLEY, Mariângela, B. Refletindo sobre a noção de exclusão. In: SAWAIA, Bader ( org.). As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

 

 



[1]  O indivíduo é subempregado quando sua jornada de trabalho é substancialmente menor que uma jornada completa que desejaria realizar ou seu salário é inferior ao que necessitaria para viver);

[2] Com a redemocratização do país, essas organizações ampliaram a abrangência de atuação para novos espaços de articulação  sócio-política, como a defesa de direitos  de grupos específicos da população: mulheres, negros, povos índigenas, crianças abandonadas, etc. (GARCIA, 2003)

[3] Prática de administração de empresas exercida pelos próprios trabalhadores. (SINGER, 2000)