ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Área Temática: Princípios da Economia Solidária
Lorena de Fátima Prim - Professora Doutora do Departamento de Psicologia e ITCP da Universidade Regional de Blumenau/SC (FURB) - lprim@uol.com.br
RESUMO
A economia solidária rural em Santa Catarina se consolida em todas as regiões, sendo uma resposta à exclusão social da agricultura familiar neste Estado. Este trabalho mostra a importância da dimensão psicossocial da economia solidária rural para a compreensão de sua complexidade e de sua consolidação, exemplificando com o estudo da Associação dos Agricultores Monte Alegre (AGRIMA). A revisão bibliográfica fundamenta-se no conceito de economia solidária, de agricultura familiar e dos aspectos psicossociais. Como resultado, se constatou que, na dimensão psicossocial, as principais conquistas dos agricultores associados foram a redução do estresse, a diminuição do medo do risco e da insegurança e o aumento de ânimo e esperança no futuro, bem como da auto-estima, da capacidade de diálogo e de reflexão crítica sobre a sociedade. No entanto, no que tange à questão de gênero e da juventude, apesar das modificações em curso, constatou-se que, ainda se reproduzem práticas patriarcais e machistas. A consolidação de uma economia solidária rural que verdadeiramente transforme a vida dos homens, mulheres e jovens está condicionada à construção de novos sentidos, significados, sentimentos e ações para todos os seus protagonistas. Para isso, é fundamental transformar, na integralidade, a dimensão psicossocial dessa nova forma de fazer economia.
PALAVRAS-CHAVE: Aspectos Psicossociais; Agricultura Familiar; Economia Solidária.
INTRODUÇÃO
A economia solidária rural em Santa Catarina se consolida em todas as regiões do Estado, sendo uma resposta à exclusão social da agricultura familiar frente à chamada “modernização dolorosa” da agricultura brasileira. Santa Catarina[1] possui um modelo de desenvolvimento socioeconômico que, por estar fundamentado no desenvolvimento endógeno e equilibrado e na pequena agricultura familiar, se tornou exemplo de êxito em todo o país. Atualmente, o Estado tornou-se vice-campeão nacional de êxodo rural, e suas pequenas e médias cidades, devido aos altos índices de desemprego, não estão mais conseguindo oferecer oportunidades de trabalho.
A agricultura de Santa Catarina fundamenta-se na pequena agricultura familiar diversificada que representa a maioria dos estabelecimentos agrícolas (mais de 90% do total), e se constituiu, nas duas últimas décadas, em um dos importantes pólos agroindustriais da América Latina. No entanto, a partir dos anos 80, diversos fatores contribuíram para gerar a atual crise na agricultura familiar do Estado: a) - a concentração das atividades agrícolas em monoculturas associadas aos complexos agroindustriais, como é o caso do Oeste Catarinense, em que o setor da suinocultura, conforme Testa (1996), expulsou mais de 47 mil famílias do total das 67 mil envolvidas na atividade; b) – a diminuição do volume de recursos de crédito agrícola e o aumento das taxas de juro; c) – o esgotamento dos recursos naturais, que já estão sendo explorados acima de sua capacidade de uso, provocando destruição ambiental; d) – a redução na área cultivada de milho e soja, em especial de soja, que ocorre, predominantemente, nas propriedades de até 50 hectares; e) – a redução na rentabilidade de produtos tradicionais, como, por exemplo, o suíno e o milho e; f) - a distância dos principais mercados consumidores, a escassez de terras nobres, o esgotamento da fronteira agrícola, a pulverização da estrutura fundiária e a baixa qualidade dos solos, que são fatores de ordem estrutural.
A ação conjunta dos fatores mencionados desencadeou a pouca rentabilidade das atividades agrícolas, fato que causa o desânimo nos agricultores frente à sua condição de vida. No entanto, apesar do êxodo rural em consolidação, em especial dos jovens – que, em sua maioria são do sexo feminino, o que mostra forte viés de gênero do êxodo rural –, estudiosos como Abramovay et al. (2001), Stropasolas (2002) e Prim (2004) identificaram o interesse de muitos deles em permanecer no meio rural como agricultores.
Nas últimas décadas do século passado, vários movimentos sociais rurais e urbanos se consolidaram em Santa Catarina. Tais movimentos atuaram na conquista da democracia e foram promovedores de nova cultura política que abriu diversos caminhos para a formação de novos projetos e experiências de economia solidária. A maioria desses movimentos sociais, especialmente os rurais[2], a partir de meados da década de 80 do século passado, fomentou a constituição de organizações de apoio à economia solidária rural.
Segundo Pedrini, Prim e Santos (2004), as principais entidades e fóruns de apoio da economia solidária no meio rural de Santa Catarina são: a Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO), a Confederação Nacional de Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (CONCRAB), o Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores Rurais (CEPAGRI), a Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (AGRECO), o Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (CEPAGRO), o Centro Vianei de Educação Popular (VIANEI), os Miniprojetos Alternativos (MPAs/CNBB), a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Regional de Blumenau (ITCP/FURB), a Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Solidários da Universidade Federal de Santa Catarina (INTECSOLI/UFSC), a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF-SUL) e o Fórum Catarinense de Economia Solidária (FCES).
OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho é mostrar a importância da dimensão psicossocial para a consolidação da economia solidária rural, tendo como base o estudo acerca da Associação dos Agricultores Monte Alegre (AGRIMA), vinculada à APACO, no Oeste de Santa Catarina.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
A revisão bibliográfica sustenta-se em três categorias: os conceitos de agricultura familiar, de economia solidária e de aspectos psicossociais.
Para trabalhar o conceito de agricultura familiar, optou-se por Wanderley (1999); o de economia solidária, por Singer (2003) e Santos (2002); e o de dimensão psicossocial, por Vigotski (2000) e Sawaia (1999). Assim, Vigotski explica a subjetividade, que se constitui de linguagem, pensamento, sentidos, significados, sentimentos, emoções e ações, e Sawaia trabalha a subjetividade que vive o processo dialético de exclusão/inclusão, nas suas múltiplas dimensões, e como potencializá-la para enfrentar essa condição em busca da felicidade ético-política.
Quanto à agricultura familiar, Wanderley (1999) a define como aquela na qual a família, ao mesmo tempo em que é a proprietária dos meios de produção, assume a força de trabalho no estabelecimento produtivo. O seu sistema de produção tem como base a policultura-pecuária, pois esta a protege dos riscos da agricultura, provocados, principalmente, pelas intempéries climáticas, falta de políticas de preços mínimos e de seguros agrícolas. O fator familiar interfere na forma como o trabalho é organizado na agricultura que, por sua vez, se diferencia do modelo operário pela lógica própria que segue e que está baseada, principalmente, no poder que o pai tem sobre os demais integrantes da família (agricultora e filhos), já que a agricultura familiar possui forte tradição patriarcal. Assim, o pai tenta equilibrar o ritmo e a necessidade de trabalho da família com a expectativa do padrão de consumo da mesma para a sua reprodução social. Nessa perspectiva, o horizonte de gerações é fundamental para a reprodução da agricultura familiar, pois, sem os filhos para dar continuidade às atividades agrícolas, a mesma corre sério risco de se extinguir.
Outra característica da agricultura familiar no Brasil, segundo Wanderley (1999), é a sua histórica precariedade, pois, devido à falta de políticas de apoio, o meio rural sofre, principalmente, o problema do isolamento, a falta de uma educação voltada à sua realidade e de formas adequadas de transporte e lazer.
Conforme Prim (2004), em decorrência da mecanização das atividades e do uso de insumos agrícolas, a modernização da agricultura provocou a diminuição do peso e a rudeza do trabalho agrícola no âmbito físico. No entanto, como é necessário produzir sempre mais para garantir o retorno financeiro das atividades, os agricultores passaram a sofrer de estresse e de problemas psicológicos, tanto ou até mais que os trabalhadores do meio urbano. Atualmente, a agricultura familiar largamente vive riscos, sendo que tal fato deixa os agricultores inseguros em relação ao futuro.
Quanto ao conceito de economia solidária, conforme Singer (2003, p. 116),
A economia solidária é hoje um conceito amplamente utilizado dos dois lados do Atlântico, com acepções variadas, mas que giram todas ao redor da idéia da solidariedade, em contraste com o individualismo competitivo que caracteriza o comportamento econômico padrão nas sociedades capitalistas. O conceito se refere a organizações de produtores, consumidores, poupadores, etc., que se distinguem por duas especificidades: (a) estimulam a solidariedade entre os membros mediante a prática da autogestão e (b) praticam a solidariedade para com a população trabalhadora em geral, com ênfase na ajuda aos mais desfavorecidos.
Os protagonistas da economia solidária são os trabalhadores dos meios rural e urbano que, diante das contradições do modelo urbano-industrial em crise, vivem processos de exclusão/inclusão social perverso, pois estão sendo inseridos na sociedade de maneira precária, isto é, sem acesso aos direitos sociais necessários para viver com dignidade e cidadania.
No Brasil, a economia solidária ressurgiu durante a década de 80 como uma resposta da sociedade civil à crise do modelo urbano-industrial, que tem como base o aumento da concentração de riquezas e de poder, o desemprego, a precarização das relações de trabalho, a produção da violência e a destruição ambiental.
Frente a esta situação, várias entidades da sociedade civil foram criadas para prestar assessoria aos trabalhadores e os organizar em associações, cooperativas populares e microempresas autogestionárias. Tais entidades também são protagonistas da economia solidária, se constituindo em forma de redes e fóruns. As principais entidades e movimentos populares que apóiam a economia solidária são a Cáritas, a Federação e Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), as agências do movimento sindical urbano, como a Associação dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (ANTEAG), a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), formada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), além das Incubadoras Universitárias. (SINGER, 2003; SANTOS, 2002).
Quanto à subjetividade, partindo dos princípios do materialismo histórico-dialético, Vigotski (2000) constrói uma teoria que se fundamenta na multideterminação do homem, pois considera que os aspectos biológicos e os sócio-históricos são a base para a constituição de sua subjetividade. O homem é produto e produtor da história e não, um reflexo. É mediante a sua práxis que ele transforma a realidade, a sociedade e, ao mesmo tempo, a si próprio. A processualidade aponta para a sua transcendência, que é a capacidade de, ao longo da história, criar e fazer escolhas.
O homem se diferencia de sua origem biológica e dos outros seres vivos pelo desenvolvimento das funções psicológicas superiores que a ele possibilitam lidar, de maneira abstrata, com a realidade concreta. No entanto, essa capacidade é adquirida no processo de socialização, mediante interações sociais com pares mais experientes da cultura, da sociedade. Toda atividade psicológica é mediada por signos, que são criados pelo homem para servir de meios auxiliares na solução de problemas psicológicos (lembrar, comprar coisas, relatar, escolher, etc.). O homem é capaz de se libertar da materialidade e, por meio da elaboração de conceitos, estruturar o pensamento registrando-o na cultura. O trabalho humano permite ao homem, num único processo, transformar a natureza e transformar-se a si próprio. O homem se apropria dos instrumentos e dos signos que, primeiramente, ocorrem nas relações interpsicológicas (entre os pares) para, em seguida, serem desenvolvidos nas relações intrapsicológicas, isto é, internamente, via processo de internalização.
No processo de significação, Vigostski (2000) faz uma distinção entre o significado e o sentido que é fundamental para superar as visões deterministas que colocaram o homem como reflexo, ora da biologia, ora dos condicionantes sociais, ora dos mecanismos mentalistas. É no significado da palavra que se encontra a unidade do pensamento e da linguagem e é somente na linguagem interior que o significado da palavra é submetido ao predomínio do sentido, sendo este a soma de todos os fatos psicológicos que a palavra desperta na consciência humana. O sentido de uma palavra é inconstante e se modifica na consciência; sua definição e sua análise contribuem para se entender a semântica da linguagem. “O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos”. (VIGOTSKI, 2000, p. 465). A partir do contexto, o sentido confere um enriquecimento às palavras, sendo este fato uma lei fundamental da dinâmica dos significados das palavras. O sentido da palavra é inesgotável. A palavra somente adquire sentido na frase a que pertence, e esta, por sua vez, só adquire sentido no contexto de sua produção.
Para Vigotski (2000), o pensamento não nasce de outro pensamento, mas da consciência humana que o motiva e, devido a isso, a análise psicológica do enunciado só chega ao final quando descortina o plano interior do pensamento verbal que é a sua base afetivo-volitiva. O estudo e a análise do pensamento e da linguagem são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. Por isso, a palavra é considerada o microcosmo da consciência humana.
O próprio pensamento não nasce de outro pensamento, mas do campo da nossa consciência que o motiva, que abrange os nossos pendores e necessidades, os nossos interesses e motivações, os nossos afetos e emoções. Por trás do pensamento existe uma tendência afetiva e volitiva. Só ela pode dar a resposta ao último porquê na análise do pensamento. (VIGOTSKI, 2000, p. 479).
O conceito de zonas de sentido é composto pelo significado, mais estável e acessível ao pesquisador, e pelo sentido, mais instável e menos acessível que o significado. Por isso, para investigar o sentido, o pesquisador deve compreender o subtexto do discurso, sendo que, assim, encontrará a base afetivo-volitiva do pensamento e poderá fazer as análises psicológicas, descortinando, no plano interior, a motivação que está encoberta pelo pensamento verbal.
O aspecto intelectual não é separado do afetivo-volitivo. Foi com essa formulação que Vigotski superou o dualismo corpo-psíquico, tão caro à Psicologia. Para superar a situação de exclusão/inclusão social perversa, fazem-se necessárias não apenas mudanças nas condições objetivas dos sujeitos que a experienciam, mas também na sua subjetividade. No entanto, a transformação na subjetividade não é algo fácil, pois as funções psicológicas superiores são mediadas pela intersubjetividade que está vinculada à ideologia e à cultura de cada contexto social. Por isso, é mais fácil o sujeito reproduzir as formas de dominação: aquilo que fizeram com ele, ele aprende a fazer com os outros e consigo próprio. (VIGOTSKY apud PRIM, 2004).
Entender as transformações sociais causadas pela economia solidária rural é um desafio que exige um olhar interdisciplinar e um enfoque psicossocial que permitirão captar as sutilezas do processo de singularização do homem, no particular da espacialidade rural. A análise dos sentidos, dos sentimentos, que são a base afetivo-volitiva das ações dos agricultores, denuncia as sutilezas da desigualdade constitutiva da agricultura familiar - que devem ser desmascaradas – para a consolidação e êxito das experiências. Neste caso, se destacam as desigualdades de gênero e de geração, nas quais as mulheres e os jovens são duplamente excluídos, pois o meio rural os torna invisíveis duplamente, transformando-os nos “outros” da agricultura familiar. O patriarcalismo é a base da dinâmica familiar, e o meio rural é o lugar das hierarquias, das contradições, dos conflitos de sentidos, de significados, de ideologias e de culturas que vivem sob o signo da desigualdade. Cabe à economia solidária preocupar-se com esse fato para as suas experiências se tornarem lugar de aprendizagem da participação social, incubadoras de cidadania e de potência de ação comum.
Sawaia (1999, p. 07) analisa o conceito de exclusão mostrando os seus limites quando este cai no monolitismo analítico que o reduz à dimensão econômica, o colocando tão somente como sinônimo de pobreza material. Para a autora, a noção central do conceito de exclusão social, que é o de injustiça social, define-se pelo viés da discriminação social e do sofrimento ético-político vivido pelos sujeitos excluídos. Dessa forma, Sawaia (1999) define que o processo exclusão/inclusão é constituído por três dimensões: a dimensão objetiva, da desigualdade social; a dimensão ética, da injustiça social; e a dimensão subjetiva, do sofrimento psicossocial.
A dimensão ético-psicossocial implica o sujeito por inteiro, “de carne e osso”, e se constrói em todas as formas de vida social, sendo também vivida como necessidade do eu: sentidos, significados e ações que envolvem o homem nas suas relações concretas com os outros e com a sociedade. Pesquisadores do Núcleo de Estudos da Dialética Exclusão/Inclusão (NEXIN) da PUC-SP, coordenado por Bader Sawaia, ao ouvirem os relatos de diferentes categorias de excluídos, constataram que, na gênese desse sofrimento, está a consciência do sentimento de desvalor, da deslegitimidade social e o desejo de “ser gente”. O homem não está reduzido às suas necessidades biológicas, mesmo quando vive na miséria.
No entanto, recuperar a subjetividade nas análises econômicas e políticas não significa perder a dimensão coletiva ou propor a retirada da responsabilidade do Estado; significa mostrar que a exclusão também se faz presente na subjetividade, causando aos sujeitos sofrimentos de diferentes formas. Este sofrimento mutila o cotidiano e diminui a autonomia, sustentando inúmeras formas de dominação, sutis ou não. Por isso, Sawaia (1999) o define como ético-político. O descrédito social e a falta de dignidade são os seus principais componentes.
O contraponto do sofrimento ético-político é a felicidade pública, experienciada por aqueles que sentem as vitórias da conquista da cidadania e da emancipação. A felicidade ético-político não é apenas sentir a alegria e o prazer das conquistas dos resultados materiais das reivindicações:
A felicidade ético-política é sentida quando se ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se à humanidade. [...] Os homens realizam-se com os outros e não sozinhos, portanto, os benefícios de uma coletividade organizada são relevantes a todos. (SAWAIA, 1999, p. 105 e 116).
Embora o desejo pelo comum esteja a cada dia mais dilacerado e fragmentado frente às incertezas e aos riscos da atual sociedade, somente o ombro amigo pode eliminar a tristeza, pois ele faz diminuir a solidão. Por mais que a neurociência ou a ciência instrumental tente negar os alicerces ontológicos, éticos e políticos, no caso, a amizade e a paixão pelo bem comum são os principais antídotos da solidão e da servidão. A potência de ação pode ser definida como “a capacidade de ser afetado pelo outro, num processo de possibilidades infinitas de criação e entrelaçamento nos bons e maus encontros. É quando me torno causa de meus afetos e senhor de minha percepção”. (SAWAIA, 2002, p. 125). Por isso, eleger a potência de ação como alvo da participação social equivale a buscar o sujeito que luta contra a escravidão e que é defensor dos direitos sociais.
METODOLOGIA
A metodologia do trabalho é de cunho qualitativo, caracterizando-se como um estudo de caso acerca da experiência AGRIMA. Para realizá-lo, seguiram-se os seguintes passos: a) revisão bibliográfica; b) realização de entrevistas com assessores das redes de apoio e agricultores que participam da AGRIMA; c) análise de documentos, principalmente de estatutos e regimentos do empreendimento; d) visitas e acompanhamentos do trabalho cotidiano no empreendimento; e e) participação nas atividades relacionadas ao Fórum Catarinense de Economia Solidária (FCES), como reuniões, seminários e feiras, e no grupo de trabalho (GT) de elaboração de políticas públicas, que envolve uma comissão que representa o FCES e alguns setores do governo estadual de SC.
ANÁLISE DOS RESULTADOS
A AGRIMA se localiza no Oeste Catarinense, sendo formada por 05 famílias[3] de agricultores que produzem coletivamente embutidos de suínos de forma artesanal, leite, milho, entre outras pequenas lavouras. Esse empreendimento interage com uma rede de organizações, com a qual a AGRIMA realiza as mais diversas trocas sociais. É com a APACO que se estabelece a interação mais significativa. Esta é uma Organização Não-Governamental (ONG) que objetiva a promoção e a consolidação da “agricultura de grupo” entre pequenos agricultores familiares da região Oeste Catarinense e que foi criada em 1989 com o apoio do movimento sindical rural e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica. Localizada no município de Chapecó, sua atuação atinge 24 municípios do Oeste Catarinense e seu trabalho envolve 145 grupos de cooperação englobando, aproximadamente, 1400 famílias de pequenos agricultores (PRIM, 1996 e 2004). A AGRIMA também é filiada à FETRAF-SUL, à Unidade Central das Agroindústrias Familiares do Oeste Catarinense (UCAF) e à Cooper Familiar. É por meio do vínculo com esta última que a AGRIMA obtém a nota fiscal para comercialização dos seus produtos.
Os sócios da AGRIMA relataram que a criaram como estratégia para se manterem (a si próprios e aos seus filhos) no meio rural com mais rentabilidade econômica, dignidade e sustentabilidade ambiental. Consideram que, para isso acontecer, é necessário que o país desenvolva políticas agrícolas que dêem segurança ao pequeno agricultor familiar, além de uma política educacional que valorize o meio rural.
Com forte influência da atuação das CEBs, grupos vinculados à igreja que se fundamentam na Teologia da Libertação, as lideranças da AGRIMA são filhas dos movimentos sociais rurais do Oeste Catarinense. Para essas lideranças, somente quem tem como base afetivo-volitiva o desejo de construção de um novo projeto societário, alternativo ao capitalismo, é que consegue ter forças para enfrentar os inúmeros desafios vividos na tentativa de consolidar a economia solidária. No caso da AGRIMA, os desafios foram vários: a ausência do Serviço Municipal de Inspeção, a falta de confiabilidade do sistema bancário nos pequenos agricultores que quase os impediu de acessar os recursos do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) para a construção da agroindústria de derivados de suínos, a conquista das novas tecnologias de produção, do mercado consumidor e a configuração da autogestão e da solidariedade no próprio grupo.
Para a superação dos desafios mencionados, o estudo e os cursos de capacitação são vistos como grandes aliados e, por isso, valorizados entre os agricultores da Associação, pois servem para prepará-los para desenvolverem a profissão com mais qualidade e também para torná-los “mais cidadãos”, isto é, mais críticos ao sistema dominante e mais participativos na sociedade.
Os agricultores sócios da AGRIMA gostam de morar na comunidade Monte Alegre. Os fortes vínculos de interconhecimento, historicamente construídos, desdobram-se em relações de amizade, confiança, apoio mútuo e afetividade entre eles. A formação advinda das CEBs e o conhecimento entre os sócios foram citados como fundamentais tanto na base que levou à criação da AGRIMA como para a sua concretização. Para eles, o segredo de se manterem unidos está na confiança que um tem um no outro e na crença de que podem e merecem ter um futuro mais digno juntos. Eles mesclam significados da cultura tradicional da agricultura familiar, como, por exemplo, o espírito comunitário, no caso com forte viés de parentesco, com significados advindos da Utopia da Libertação, aprendidos na atuação das CEBs.
A partir das três dimensões do processo dialético exclusão/inclusão social, apresentadas por Sawaia (1999), definiram-se os benefícios na dimensão econômica e na dimensão psicossocial - que compreende o ético e o subjetivo - que a economia solidária rural possibilitou aos seus protagonistas.
Na dimensão econômica, a cooperação proporciona a permanência dos agricultores adultos (pais e mães) no meio rural, aumentando a rentabilidade das atividades agrícolas, conquistada mediante a racionalização do processo produtivo, via a nova maneira de organizar o trabalho, com o restabelecimento parcial da cadeia produtiva e começo do desenvolvimento da agroecologia; a junção dos recursos financeiros, humanos (de mão-de-obra) e das propriedades rurais; e a interação com redes de apoio e Fóruns da economia solidária.
Como conquista, na dimensão econômica, no caso da AGRIMA, citam-se a construção da agroindústria, a aquisição do carro frigorífico e a construção do prédio do escritório, cujo financiamento está mais de 85% pago e cujo valor total é de, aproximadamente, R$ 200.000,00. Também se consolidou a marca dos produtos no mercado consumidor, com etiqueta e selo próprios, mesmo com toda a competitividade do setor de suínos. É relevante destacar que a Associação tem mercado consumidor para toda a sua produção, que atingiu a capacidade máxima da agroindústria. Após oito anos de criação, a AGRIMA, a cada ano, vem superando novos desafios. Atualmente, o empreendimento mantém os postos de trabalho das famílias associadas, gerando uma renda de, aproximadamente, três salários mínimos para cada uma, sendo que essa renda é usada integralmente para pagar os financiamentos da agroindústria e do carro frigorífico adquirido para realizar a comercialização.
Outra conquista relatada pelos agricultores foi o abandono da produção de fumo, que reduziu o peso do trabalho agrícola e o uso de agrotóxicos e, conseqüentemente, melhorou a saúde dos agricultores e diminuiu a destruição ambiental.
Na dimensão psicossocial, as conquistas foram a modificação no sentido do trabalho que, em decorrência da racionalização e autogestão do trabalho cooperado, reduziu o estresse, o trabalho pesado nos cultivos, em especial quanto ao fato de não precisar mais plantar fumo, sobretudo em virtude do incremento da agroindustrialização.
A participação nos eventos de capacitação, a interação com as redes de apoio, as diversas trocas estabelecidas nas visitas de estudo recebidas criaram nova forma de socialização para os agricultores, o que fez com que a auto-estima dos mesmos aumentasse. A partir da valorização das experiências, que se tornaram referências em âmbito nacional, os agricultores também passaram a se valorizar mais.
A vivência do trabalho coletivo é relatada como produtora de ânimo e potência de ação, em virtude do apoio mútuo concretizado nas conversas, nas brincadeiras e, até, nos conflitos e nas brigas, tornando-os mais felizes. A tomada de decisão coletiva diminuiu a insegurança e o medo do risco dos agricultores, gerando esperança no futuro.
CONCLUSÕES
Quanto às conclusões deste trabalho, considera-se seja a economia solidária rural em Santa Catarina uma forma de enfrentamento da sociedade civil organizada ao processo dialético de exclusão/inclusão social perverso da agricultura familiar.
A solidariedade como uma nova forma de sociabilidade ressalta a importância de se olhar para a dimensão psicossocial da economia solidária, pois, somente assim, se poderão captar aspectos que estão além das suas dimensões econômica e política e ampliar a análise para atingir esse fenômeno em toda a sua complexidade, aprendendo exatamente aquilo que ele traz de inovador, que são os avanços na construção de nova ética e estética individual (subjetiva e intersubjetiva) e societal (grupal e coletiva).
Na dimensão psicossocial, na AGRIMA, foi potencializada a felicidade ético-política. Essa pode ser entendida como o processo crescente de potencialização dos agricultores que, mediante a vivência da democrática da cooperação, convivem com a pluralidade de subjetividades e intersubjetividades, iguais e diferentes, num processo grupal com forte identidade coletiva e consciência de pertencimento ao projeto de construir, no cotidiano, uma nova sociedade, mais ética, igualitária, justa e democrática.
Falar do processo de exclusão/inclusão social perverso na perspectiva ético-política é falar de poder, de direitos sociais e de economia, tanto quanto de desejo, de afetividade e de subjetividade. É considerar que, na dimensão ético-psicossocial da economia solidária rural de Santa Catarina, também está gritante o desejo de valorização, de reconhecimento e de dignidade, pois os agricultores não desejam apenas viabilizar a sobrevivência. A análise do subtexto dos discursos mostra o desejo de expansão, de liberdade e de fazer valer o potencial humano na sua plenitude. Os agricultores da AGRIMA procuram superar as inúmeras formas de dominação que, por serem mutiladoras, reduzem a capacidade de potência de agir, de autonomia e de liberdade.
O sentido do trabalho para esses pequenos agricultores, protagonistas da economia solidária rural na experiência AGRIMA, torna-se categoria-chave, pois o trabalho solidário, de maneira geral, diminuiu o sofrimento ético-político do trabalho agrícola. No entanto, o sentido desse trabalho não é igual para todos os sócios da AGRIMA, incidindo sobre os diferentes lugares que cada um ocupa na pluralidade da agricultura familiar, que está perpassada pelas dimensões de gênero e de geração. Assim, tem-se o lugar dos homens, o lugar das mulheres e o lugar dos jovens. O trabalho associativo na AGRIMA é sentido e vivido de maneiras diferentes: sentido por alguns como total libertação e, por outros, com forte tom de escravização.
No que se refere às conquistas alcançadas, de forma geral, tanto na dimensão material como na ético-psicossocial, a economia solidária rural diminuiu o sofrimento ético-político dos agricultores, aumentando a sua capacidade de ação, apesar das diferenças no sentir e agir de cada um.
No que tange à questão de gênero, apesar das modificações em curso, ainda se reproduzem as práticas patriarcais e machistas da agricultura camponesa, nas quais a mulher “ajuda o marido”, apesar da tripla jornada de trabalho, e tem sua vida fora do âmbito privado ainda muito restrita. A análise da dimensão psicossocial mostra que a questão de gênero precisa ser questionada na AGRIMA e também a economia solidária no meio rural, pois essa situação não ocorre apenas na AGRIMA, ainda se tendo muito a desnaturalizar e a superar quanto à questão de gênero no meio rural.
A AGRIMA incentiva a participação dos jovens na gestão das atividades. No entanto, existe o medo dos pais de que “todos os jovens” saiam para ir morar na cidade, Por isso, os pais dizem que organizaram a AGRIMA para que seus filhos fiquem trabalhando e vivendo com eles. Mas, a situação dos jovens também é delicada. Para os pais, é vivida de maneira ambígua, sendo fonte de tensão e de conflitos. O desejo dos pais de propiciar um futuro melhor aos filhos, com dignidade, foi citado por todos.Todavia, para os jovens, a realização do curso universitário lhes abre as portas para conquistarem trabalho urbano, o qual é mais valorizado pelos jovens. Esse fato deixa os pais de mãos atadas, pois o êxodo rural dos jovens coloca totalmente em perigo a reprodução social da agricultura familiar.
A consolidação de uma economia solidária rural que verdadeiramente transforme a vida dos homens, mulheres e jovens está condicionada à construção para todos de novos sentidos, significados e ações. É fundamental considerar, conhecer e transformar na integralidade a dimensão psicossocial dessa nova forma de fazer economia. Assim, o embate com a estrutura capitalista é a maior fonte de sofrimento, caracterizado por mesclas de esperança e de desilusão.
REFERÊNCIAS
PEDRINI, Dalila Maria; PRIM, Lorena de Fátima; SANTOS, Nilce. Apontando caminhos: a solidariedade na economia catarinense. In: GAIGER, Luiz Inácio (Org.). Sentidos e experiências da economia solidária no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
POLI. Odilon. Leituras em movimentos sociais. Chapecó, Grifos, 1996.
PRIM, Lorena de Fátima. Agricultura de grupo e projeto camponês: avanços na construção da cidadania – o Movimento de Cooperação Agrícola no Oeste Catarinense. Dissertação apresentada no Programa de Pós Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996.
SANTOS, Boaventura S. (org). Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SAWAIA, Bader B. Exclusão ou inclusão perversa? In: SAWAIA, Bader B. (Org.) As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 1999, 7-15. 156 p.
SAWAIA, Bader B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão In: SAWAIA, Bader B. (Org.) As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 1999, 97-118. 156 p.
SAWAIA, Bader B. Participação social e subjetividade. In: SORRENTINO, Marcos. Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2002. p. 115-134.
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola/Centro João XXIII, 1993.
SINGER, Paul. Economia solidária. In: CATTANI, Antônio David. (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003.
STROPASOLAS, Valmir Luiz. O Mundo rural no horizonte dos jovens: o caso dos filhos (as) de agricultores familiares de Ouro (SC). Tese apresentada ao Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2002.
TESTA, Vilson M. et al. O desenvolvimento sustentável do Oeste Catarinense: proposta para a discussão. Florianópolis, Epagri, 1996.
WANDERLEY, Maria de N. B. “Raízes históricas do campesinato brasileiro”. In: TEDESCO, João Carlos. (Org.) Agricultura familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo, EDIUPF, 1999.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[1] Santa Catarina possui uma população estimada em 5.356.360 pessoas. A maioria da população, 78,7%, encontra-se na área urbana, enquanto que 21,3% vivem na zona rural. Não há, em SC, grandes concentrações populacionais, e a maioria das cidades são pequenas e distribuídas uniformemente por todo o Estado. (IBGE, 2000 apud PRIM, 2004)
[2] Conforme Scherer-Warren (1993), Prim (1996 e 2004) e Poli (1999), no meio rural, tem-se como principais, o Movimento das Barragens (MAB), o Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA), o Movimento dos Sem Terra (MST), o Novo Sindicalismo Rural e o Movimento de Cooperação Agrícola (MCA).
[3] A maioria dos sócios possui a média de 35 a 40 anos, e suas famílias têm, em média, dois filhos na faixa etária de 12 a 18 anos.