ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESIGN INTEGRAL:
UMA EXPERIÊNCIA COM ARTESÃOS DO CIPÓ IMBÉ DE GARUVA (SC, BRASIL)
(Área Temática: Relato de Experiência)
Resumo
O desconforto em relação às problemáticas
sócio-ambientais geradas pela economia capitalista é um fato concreto. Diante
destas problemáticas, o design deve se comportar segundo uma ética que
considere as dimensões sociais, políticas, culturais e ecológicas orientadas à
Economia Solidária. Tendo em vista estes aspectos, este artigo reflete a
emergência do Design Integral. O objeto de estudo da pesquisa relatada trata do
Ciclo de Vida do artesanato de cipó Imbé de Garuva, que identificou
necessidades e apontou demandas para a melhoria deste sistema, através de
pesquisa qualitativa com a comunidade em questão. Entre os resultados
verificados, destacam-se a extração desordenada e ilegal de cipó, processos
produtivos tecnicamente precários - e impactantes social e ambientalmente -,
além da exploração de artesãos por um comércio injusto. Esta pesquisa resultou
no Projeto Cipó Imbé, que é pautado em processos de diagnóstico e validação com
ferramentas participativas, na busca de soluções de Manejo Sustentado, Design
Integral e Economia Solidária.
Palavras-chave: Artesanato; Cipó Imbé; Economia Solidária; Design Integral.
O presente artigo trata de uma
experiência iniciada a partir de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Design
da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina. O objeto de estudo deste TCC
refere-se ao ciclo de vida do artesanato da fibra de cipó Imbé, da região de
Garuva - SC.
Santa Catarina é um Estado privilegiado
por apresentar uma grande diversidade de espécies animais e vegetais em seus
ecossistemas. Entretanto, diversos tipos de fibras vegetais podem ser
disponibilizados como matéria-prima para o artesanato e o design através do
cultivo e manejo responsáveis dos ecossistemas naturais. O emprego de fibras vegetais no design de
produtos industriais e artesanais, quando considerado todo o seu ciclo de vida,
além de apresentar uma alternativa de redução dos efeitos negativos ao meio ambiente, pode representar uma forma
de valorização do trabalho local, bem como de geração de trabalho e renda em
lugares que as dificuldades de sobrevivência mostram-se cada vez mais presentes.
Diante das problemáticas sócio-ambientais atuais geradas pela economia
capitalista, o design enquanto atividade projetual deve se comportar de acordo
com uma ética que considere não só as questões econômicas, mas também as
sociais, políticas, culturais e ecológicas. Considerando todas estas dimensões
da sustentabilidade, este trabalho foi orientado para uma nova categoria de
design, denominado aqui Design Integral.
Tendo em vista este Design, foram observadas todas as etapas que compõem
o ciclo de vida do artesanato de cipó imbé na comunidade de artesãos de Garuva,
tais como as técnicas de extração, beneficiamento e manufatura da fibra, bem
como sua distribuição, comercialização, uso e descarte. Tinha por objetivo identificar
necessidades e dificuldades em cada uma destas etapas, frente aos impactos
ecológicos, sociais, culturais e econômicos. Além de identificar possíveis
contribuições do Design para a melhoria da qualidade dos produtos, dos processos
e das implicações sócio-ambientais relacionadas à esta cadeia produtiva, e,
sobretudo, A Economia Solidária desta comunidade de artesãos.
O design é uma arte social[4]
e por fazer parte das ciências humanas, a pesquisa de campo foi orientada
fundamentalmente pela metodologia das ciências sociais. No trabalho de campo
foram entrevistados pequenos produtores de cipó imbé da região de Garuva. A
estrutura das entrevistas foi determinada por uma orientação sistêmica - ou
pela ótica do Design Integral.
A finalidade deste TCC foi o de despertar
o interesse dos atuais e futuros designers por uma atuação que atenda a um
contexto sócio-ambiental, bem como apresentar novas possibilidades para a sua inserção
na sociedade focado em demandas do contexto da Economia Solidária.
2. Contexto sócio-ambiental no sistema
econômico capitalista
No capitalismo, as
políticas de desenvolvimento são fundamentadas no crescimento da economia
através da superprodução, e pouco leva em conta os seus aspectos sociais e
ambientais. A alta produtividade, o desenvolvimento tecnológico acelerado e o
imenso consumo de bens desencadeiam uma série de problemas sócio-ambientais. O desemprego,
a exclusão social, o deflorestamento, a extinção de espécies, o esgotamento de
recursos naturais, etc., são conseqüências deste modelo hegemônico. E suas formas
de comercialização estão sempre ligadas a busca do alto lucro através da
inovação tecnológica, da diferenciação de produtos e serviços, dentre outras
formas capitalista de se obter monopólios. Paul Burkett
ressalta “(...) a tendência do capitalismo a devorar, dispor, degradar a
natureza ao ponto de ameaçar as condições materiais básicas de reprodução
humana” (apud Montibeller-filho, 2001:189).
De acordo com Manzini, “Este sistema como conjunto de ações humanas na sua complexidade, determinou e continua a determinar uma situação insustentável de carga e descarga para o meio ambiente[5]” (2002:325). A economia global não estão apenas destruindo a nossa ligação com a natureza e de uns com os outros, mas também comprometem a diversidade sócio-cultural. Para Capra:
O mesmo capitalismo põe em risco e destrói inúmeras comunidades locais
pelo mundo inteiro; e, no exercício de uma biotecnologia mal-pensada, violou o
caráter sagrado da vida e procurou transformar a diversidade em monocultura, a
ecologia em engenharia e a própria vida numa mercadoria (2002:217).
Mesmo assim, as indústrias continuam a
produzir de tal maneira que parecem não se importar com os agravantes
sócio-ambientais do presente e com as probabilidades de um futuro muito problemático.
Os desejos por consumo são continuamente estimulados, e a produção se torna cada
vez mais intensa, excessiva e perturbadora.
Alexander Manu,
designer radicado em Toronto, diz que “Fomos levados à nossa condição atual
pela insegurança e ganância de visão curta tanto de indivíduos quanto de
corporações, pelas cócegas da cobiça para estimular o consumo e pelo nosso caso
de amor narcotizado com a tecnologia no que esta possui de mais trivial”
(1995:14-15). Já para Lutzenberger, um expoente
ecologista brasileiro, “(...) é nosso estilo de vida consumista, resultado de
nossa cosmovisão antropocêntrica que nos faz ver este
nosso planeta, o único vivo que conhecemos (...) como se fosse um mero
almoxarifado de recursos gratuitos e ilimitados” (1995:06).
3.
Sustentabilidade: uma estratégia simultaneamente social, cultural, ecológica e
econômica
Em
resposta a atual crise global causada pelo modelo de desenvolvimento econômico
capitalista dominante, surgiu um novo paradigma[6]:
o Desenvolvimento Sustentável[7].
O Relatório de Brundtland, publicado ONU (Organização das Nações Unidas), em
1987, definiu o conceito como o “(..) desenvolvimento que responde às
necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras
de satisfazer suas próprias necessidades” (Montibeller-filho,
2001:48).
Este
paradigma pressupõe um conjunto de dimensões que compõe a sustentabilidade,
tais como: a social, econômica, ecológica, espacial / geográfica e cultural.
Para Sachs esse conjunto deve ser definido da
seguinte forma:
Sustentabilidade social: o processo
deve se dar de maneira que reduza substancialmente as diferenças sociais. E
considerar o ‘desenvolvimento em sua multidimensionalidade,
abrangendo todo o espectro de necessidades materiais e não-materiais. Sustentabilidade
econômica: define-se por uma ‘alocação e gestão mais eficientes dos
recursos e por um fluxo regular do investimento público e privado’. Sustentabilidade
ecológica: compreende o uso dos potenciais inerentes aos variados
ecossistemas compatíveis com sua mínima deterioração. Deve permitir que a
natureza encontre novos equilíbrios através de processos de utilização que
obedeçam a seu ciclo temporal. Implica também, preservar as fontes de recursos
energéticos e naturais. Sustentabilidade espacial/geográfica:
pressupõe evitar a excessiva concentração geográfica de populações, de
atividade e do poder. Busca uma relação mais equilibrada cidade/campo.
Sustentabilidade cultural: significa traduzir o conceito normativo de ecodesenvolvimento em uma pluralidade de soluções
particulares, que respeitem as especificidades de cada ecossistema, de cada
cultura e de cada local (apud Montibeller-filho, 2001:46-47).
O caminho
em direção a sustentabilidade requer uma mudança do atual paradigma
reducionista / tecnicista / economicista para um paradigma sistêmico / complexo,
e, deste modo, promover e consolidar a sustentabilidade em todas as suas
dimensões, pois se trata agora de reconhecer e interagir com as complexas redes
de inter-relações.
4. O Design
Integral
É difícil indicar o surgimento histórico do
design, pois se considerarmos que se trata da concepção de produtos para a
satisfação de necessidades humanas, desde os primórdios o homem concebe suas ferramentas.
Segundo
Acha, se “Nos referimos al trabajo simple de diseñar, si lo tomamos en el
sentido de concebir y de hacer visible gráficamente o en bulto un proyecto de
configuración, siempre tomado como lo sustancial del fenómeno debido a su
difundida práctica humana en todas las épocas y culturas” (1988:82).
Existem autores que
consideram o surgimento do design a partir do processo de industrialização, e,
mais especificamente quando se optou por melhorar os produtos em termos
estético-funcionais para incrementar o consumo. A tecnologia transformou
radicalmente as práticas de produção e as relações humanas. Com a produção em
larga escala, verificou-se uma profunda mudança no trabalho e no trabalhador. O
processo produtivo saiu das mãos do artesão e passou a ser de domínio das
máquinas, destruindo comunidades e culturas tradicionais. Para Morin, “A tecnologia tornou-se, assim, o suporte
epistemológico de simplificação e manipulação generalizadas inconscientes que
são tomadas por racionalidade” (2002:112). Desde então o design (industrial) é
orientado para lógica do consumo.
Numa época em que as dimensões
social e ecológica são cruciais para a continuidade das formas de vida, o
design como atividade projetual precisa se comportar segundo uma ética que
interaja com as diferentes soluções técnicas, econômicas, sociais, ecológicas,
culturais, etc. Segundo Papanek, “(...) o design quando alimentado por uma
profunda preocupação espiritual pelo planeta, pelo ambiente e pelas pessoas,
resulta numa perspectiva moral e ética” (1995:263). Neste sentido é necessário
adotar uma visão sistêmica / complexa para orientar suas práticas, conciliando
estas dimensões e promovendo um contexto sócio-ambiental ético e sustentável.
O Conselho Mundial de Sociedades de Design
Industrial - ICSID, desde 2002 reconhece esta necessidade, e define o design
como:
(...) uma atividade criativa, cujo objetivo é estabelecer qualidades múltiplas a objetos, processos, serviços e seus sistemas em todo ciclo de vida. Todavia, design é o fator central de humanização inovativa de tecnologias e o fator crucial da substituição cultural e econômica. (...) Design procura descobrir e investigar relações estruturais, organizacionais, funcionais, expressivas e econômicas, com o intuito de aumentar a sustentabilidade global e proteção ambiental (ética global);
prover benefícios e liberdade a toda comunidade humana, individual e coletiva, usuários finais, produtores e protagonistas de mercado (ética social);
apoiar a diversidade cultural apesar do processo de globalização mundial (ética cultural); e
fornecer produtos, serviços e sistemas, com aquelas formas que são expressivas (semiótica) e coerentes com sua complexidade (estética) (ICSID, 2002).
Todo produto provoca impacto ambiental
(positivo ou negativo), seja em função da extração de matéria-prima da
natureza, de seus processos produtivos, e de seu uso e/ou disposição final.
Diante destas questões, uma escolha criteriosa e consciente de materiais para
um projeto de um produto é essencial. Utilizar materiais renováveis, como o
cipó imbé, por exemplo, pode ser uma alternativa responsável de minimização dos
impactos ambientais. Porém, a renovação de matérias-primas deve ser entendida
em relação a quantidade de recursos que se consome e a sua velocidade de
reposição na natureza.
Todavia,
o Design Integral não considera apenas a questão ecológica, mas também as
sócio-culturais, até porque a ecologia também envolve estas dimensões.
5. A cultura popular
De modo geral a cultura popular refere-se ao
artesanato, ao folclore, a arte tradicional ou a arte do pré-capitalismo[8].
A história apresenta registros da incompreensão e de desprezo pelo popular /
tradicional. Segundo Lauer,
É com o aparecimento dos impérios teocráticos que a plástica dos dominados
[arte popular] passa a ser um assunto estritamente local ou, no melhor dos
casos, regional, confrontada a uma plástica imperial que, esta sim, transcende
as fronteiras culturais e irradia homogeneidade a partir de um remoto centro de
poder. Com a colônia, este centro de poder político torna-se ainda mais remoto
e o corte com a plástica dominante se faz drástico (de intracultural
passa a ser intercultural) e permeia vários planos: a
tecnologia, os suportes materiais dos objetos e da criação plásticas, o signo
ideológico da temática, etc. Com a República, desaparece até mesmo o tipo de
presença provincial que tinha a plástica colonial (...). A plástica - senhorial
e popular - encontra-se, pela primeira vez, completamente ‘só’ no território
(1986:21-22).
Como afirma Canclini, a subordinação e a
exclusão das classes populares e tradicionais é fruto da ação das oligarquias
do final do século XIX e início do XX.
As oligarquias liberais do final do
século XIX e início do XX teriam feito de conta que constituímos Estados, mas
apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento
subordinado e inconsciente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e
mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas
e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil revoltas e na migração que
‘transtorna’ as cidades (2000:25).
O mundo artístico impõe fortes restrições aos criadores populares, que assim se tornam indivíduos dependentes do sistema de dominação. Neste contexto de desarticulação política, a arte popular / tradicional torna-se limitada em termos de alternativa para o desenvolvimento local / territorial. A isto Canclini denominou de estratégia de descontextualização e resignificação que a cultura hegemônica estabelece em relação às culturas subalternas. Esta estratégia de desarticulação política por parte da cultura hegemônica faz com que os setores populares da sociedade sobrevivam com extremas dificuldades.
6. O artesanato de fibras vegetais
A maior parte das fibras vegetais
utilizadas no artesanato brasileiro vem da região amazônica, do Norte e do
Nordeste do Brasil. Porém, muitas fibras podem ser encontradas na região Sul e
Sudeste, na Mata Atlântica. Algumas fibras vegetais podem ser utilizadas como matéria-prima
para o artesanato e o design, através do cultivo e manejo de ecossistemas
naturais. É importante ressaltar que o cultivo de tais vegetais dependem de
técnicas que devem ser planejadas de forma integrada ao meio ambiente, e esta
interação conta com a não poluição de contaminantes
no meio ambiente, com conhecimento dos impactos resultantes da inserção de
fibras originárias de outras localidades, etc. Quanto ao extrativismo, é
importante considerar a quantidade de fibra que se extrai, pois se esta for
maior que a capacidade de renovação poderá haver uma instabilidade no ciclo de
vida natural da fibra e uma possível resiliência do ecossistema.
Muitas são as fibras vegetais
utilizadas no artesanato brasileiro: cipós, juncos, rattan, taquara, vime, fibra
de bananeira, piaçava, sisal, etc. Dependendo da espécie que se utiliza, os
processos de beneficiamento e transformação variam; algumas não recebem
tratamento e só são colocadas para secar, enquanto que outras são trançadas
ainda úmidas. Existem diversos tipos de técnicas de trançado, os tingimentos podem
usar corantes naturais extraídos de folhas, sementes ou casca de árvores (como
o urucum, o eucalipto, a casca de cebola e açafrão, entre outros), e também são
utilizados vernizes e pigmentos artificiais (como a anilina).
É fundamental
destacar, a importância da arte do trançado para as culturas tradicionais, como
modo de adaptação à natureza para a subsistência, geração de trabalho e renda, e
afirmação da identidade cultural e étnica. Ressalta-se, ainda, que o artesanato
de fibras vegetais foi pouco abordado na literatura acadêmica até os dias de
hoje, sobretudo no campo do design.
7. O contexto da pesquisa[9]
O município de Garuva, SC, está localizado a 36 Km de Joinville, a 98 Km
de Curitiba e 234 Km de Florianópolis, abrange uma área de 499,7 Km2, sendo 60%
constituído de Mata Atlântica. A cidade é popularmente conhecida como o
“Paraíso das Águas”, pois possui diversos rios que cortam o município. A
população atinge em torno de 11.000 habitantes, sendo 60% dos moradores vivem
na região urbana e 40% na região rural. Deste total de habitantes,
aproximadamente 4.000 pessoas se dedicam direta ou indiretamente ao artesanato.
Entre os materiais mais utilizados e trabalhados no artesanato da
região, se destacam: o cipó imbé e o cipó liaça que
são extraídos da Mata Atlântica e o vime que é cultivado nas regiões mais frias
do Planalto Catarinense, tal como em Rio Rufino, Bom Retiro, São Joaquim,
dentre outras localidades.
O auge da produção de artesanato de cipó do município
foi no período de 1965 à 1975. Com a abertura das exportações do governo Collor
(1990 - 1992), a concorrência dos produtos de plástico que imitavam o trançado
de fibras naturais, contribuiu para abalar os resultados das vendas destes produtos.
Desta forma, a partir de 1995, a produção artesanal começou a decair diminuindo
as encomendas dos compradores e, conseqüentemente, a margem de lucro,
apresentando por isso problemas com os pagamentos. Contudo, muitos artesãos
mudaram de profissão a partir desta data.
O artesanato de fibras vegetais provavelmente foi herdada da cultura
indígena, e no caso de Garuva, os índios que lá habitavam eram os carijós. Em
Garuva havia uma aldeia com mais de 200 índios no topo do Morro Bugre, onde
hoje se encontra a capela do Senhor Bom Jesus, no bairro Três Barras. Em 1912,
o governo brasileiro enviou um grupo de bugreiros encarregados de expulsar os
índios de perto dos povoados e empurrá-los para dentro das reservas. A verdade
é que os bugreiros mataram muitos índios, que eram covardemente atacados à
noite; e os poucos que restaram acabaram sendo confinados na reserva indígena
de Ibirama. Nas proximidades do rio Três Barras encontra-se um sambaqui, que
comprova a presença dos índios que habitaram esta região há muitos séculos.
Em Garuva, o artesanato de cipó imbé é
produzido por famílias de pequenos produtores rurais, que, em alguns casos,
dependem exclusivamente da renda deste artesanato para sobreviver. Porém, como
renda extra, algumas famílias plantam banana, mandioca, palmito, dentre outros
cultivos de subsistência. Estes artesãos estão situados entre os mais empobrecidos
do município, sobrevivendo com extremas dificuldades. Para o recorte do objeto
de estudo, foi escolhido trabalhar junto aos produtores de artesanato de cipó
imbé das comunidades rurais de Mina Velha, Palmital e Três barras.
8.
Metodologia da pesquisa
A pesquisa de campo foi orientada
fundamentalmente pela metodologia das ciências sociais. O trabalho de campo da
presente pesquisa foi iniciado por meio de entrevistas com os pequenos
produtores / artesãos de cipó imbé. Os objetivos da pesquisa de campo foram: 1.
Identificar as necessidades e dificuldades de cada etapa do ciclo de vida do
artesanato de cipó imbé de Garuva, frente aos impactos sociais, ecológicos,
culturais e econômicos; 2. Identificar possíveis contribuições do Design para a melhoria da qualidade dos produtos,
dos processos e das implicações sócio-ambientais, e da melhoria da qualidade de
vida desta comunidade e do aumento de suas rendas.
Em campo adotou-se o método de pesquisa qualitativa, com entrevistas
semi-estruturadas e registros fotográficos.
9. Resultados da pesquisa
As fibras de cipó imbé são raízes aéreas (figura 1)
extraídas da Mata Atlântica, podendo ser encontradas em diversos tipos de
árvores. Crescem a partir da “mãezera”[10],
raiz que fica no topo das árvores, de cima para baixo e enraízam-se no solo. A
extração da fibra é realizada pelos produtores duas vezes por semana, num ciclo
que se estabelece ao longo do ano todo. Há duas maneiras de extrair o cipó da
mata: por corte dos fios de cipó, onde os produtores sobem nas árvores através
de uma vara e com uma faca cortam o cipó; ou por cochado[11],
cujos produtores seguram na ponta de baixo do fio de cipó torcendo-o até que se
solte da mãezera.
Após extrair a fibra, procede-se para a organização dos fios de cipó em
feixes de 60 a 150 fios, com aproximadamente 30 e 60 quilos, respectivamente.
Estes feixes são colocados nos ombros e transportados até as casas dos
produtores. É percorrida uma distância de 6 a 10 Km para encontrar a fibra no
“mato”, e isto equivale mais ou menos a duas horas de caminhada.
O motivo que explica tamanha distância existente entre o local de
extração e o ponto de partida dos trabalhos de extração do cipó é o fato de
estar diminuindo o cipó na mata. Apesar dos artesãos terem conhecimento de como
se deve retirar o cipó da mata de modo a não extinguí-lo, o número crescente de
novos artesãos tem impactado esse ecossistema, já com perda de sustentabilidade
ecológica. Mesmo assim, não se deve desconsiderar o conhecimento empírico dos
extrativistas com relação ao ciclo natural da fibra. É importante evidenciar
que poucos estudos foram realizados em favor de um plano de manejo desta fibra,
o que poderia legalizar a extração de cipó em Garuva.
Depois de extraído o cipó, ocorre o beneficiamento da fibra, que
compreende as seguintes etapas: descascamento, raspagem do “limo”[12],
secagem, processo de “rachar”[13] a
fibra e o processo de perfilar[14] a
fibra.
Os processos de beneficiamento ocupam 59 % do tempo de trabalho - ou 32
horas -, e constatou-se a necessidade de agilizar e facilitar tais processos
(ver tabela 1). Nestes processos verificou-se a necessidade de desenvolver ferramentas
para tornar o trabalho mais ágil e oferecer uma maior eficiência.
Os processos de beneficiamento da fibra de cipó são
grandes geradores de resíduos sólidos, e as emissões de CO2
provenientes da queima dos resíduos (como a casca, o limo e a raspa[15])
são problemáticas para a saúde dos artesãos, e nocivas para o meio ambiente. A
concepção de equipamentos de proteção para os processos de beneficiamento e
manufatura, são demandas de design importantes (o limo, por exemplo, é um resíduo
que provoca coceiras que irritam a pele dos produtores).
De 50 Kg de cipó bruto obtém-se 5 Kg de cipó
beneficiado[16],
ou seja, 90% da matéria-prima se perde atualmente no beneficiamento destas
fibras, que consiste em casca, limo, raspa e água. Depois de beneficiado, os
fios de cipó são enrolados e armazenado em local seco e coberto, geralmente dentro
das casas dos produtores. Observou-se, também, a dificuldade dos produtores
para a secagem dos fios de cipó em dias de chuva. É grande a manobra que os
produtores fazem para secar os fios nesses dias, colocando-os em cima do fogo
ou em cima do fogão à lenha.
Finalmente, a fibra de cipó está beneficiada e pode ser trançada.
Existem aproximadamente 50 modelos de peças, tais como: cestos para pães,
cestos para arranjos de flores, molduras para espelho, luminárias de teto, chapéus,
porta-azeite, enfeites, dentre outros. Porém, as peças também podem ser
produzidas de cipó bruto. Utiliza-se apenas como ferramenta, “fôrmas” de
madeira que consistem em um molde positivo da peça cujo artesão trança em volta
dele. Estas fôrmas são utilizadas para trançar as peças mais complexas, que são
trazidas pelo atravessador.
Para tornar o processo da manufatura mais rápido, os artesãos utilizam
um fundo de madeira compensada (Figura 2), de diversos formatos - coração,
estrela, lua, etc. - com furos nas bordas, por onde passam os fios de cipó.
Desta forma, o fundo substitui o fundo trançado. As peças com compensado têm
preço mais baixo, já que não precisam trançar o fundo - que é a etapa mais
lenta do processo de manufatura.
Por terem preços baixos, as peças com fundo de
compensado têm mais encomendas e, portanto, são produzidas em maiores
quantidades. Na maioria dos casos, os fundos de compensado também são trazidos
pelo atravessador, que desconta o valor desses fundos do preço final das peças.
A produção é feita conforme a encomenda do atravessador e varia entre 1.000 e
1.200 peças por mês, dependendo da época do ano (atingindo uma renda de
aproximadamente 200 reais). Quando se trata de uma peça pequena - com fundo de
compensado -, uma pessoa consegue produzir 100 peças por dia, no máximo.
Os entrevistados reclamaram que o preço pago pelo atravessador não é
justo: “Ele ganha em cima das costas da gente. Não é valorizado o trabalho da
gente. É um serviço muito sofrido, tem que andar no mato e ainda chega em casa
essa trabalheira que você está vendo”.
Apenas um entrevistado não vende para os atravessadores: “Eu não vendo
para os atravessadores porque eles não pagam o preço que eu quero, então eu
vendo para as bancas da estrada e para lojas aqui em Garuva”. É significativo
que este artesão não depende exclusivamente da venda deste artesanato, e que a
maior parte de sua renda se concentra na venda de palmeira real e a banana que
planta. Portanto, os atravessadores inserem uma margem de lucro de 100% antes
de venderem aos lojistas.
Os artesãos / produtores não criam novos
produtos, e desenvolvem as mesmas peças de quando aprenderam a técnica. Por
este motivo, enjoam do que produzem, causando, conseqüentemente, uma baixa
auto-estima, e um trabalho não valorizado por eles mesmos.
Após a manufatura, as peças recebem um tratamento contra. Este
tratamento consiste em colocar as peças numa estufa onde é queimado o enxofre
em pó. Tal etapa do processo emite gases, que além de poluir o ambiente, pode
prejudicar a saúde dos artesãos. Eles necessitam uma tecnologia apropriada antifúngica.
Reduzir as emissões geradas - gasosas, líquidas ou sólidas - é uma ação
importante.
Após este longo processo de produção, as
peças são vendidas aos atravessadores, que, por sua vez, se encarregam de
tingi-las com anilina (corante artificial) para agregar valor. Um atravessador
assumiu que o comércio não é justo para o artesão e que a única forma de
melhorar a vida dos artesãos será oferecendo maior apoio e orientação a eles. Estas
peças são distribuídas para diversas regiões do Brasil, como São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul, e também para
Santa Catarina. Os pontos de venda consistem em floriculturas, lojas de
artesanato, boxes de mercados públicos, entre outros.
Segue abaixo uma tabela detalhada de todas as etapas da cadeia
produtiva, que envolve o tempo aproximado de trabalho que um artesão leva para
produzir 100 cestinhas de fundo de compensado.
Etapas da cadeia produtiva (100 fios de cipó) |
Valor aproximado de horas trabalhadas |
Extração |
6 h |
Descascamento
da fibra |
3 h |
Raspagem
do limo |
8 h |
Secagem
em dias de sol quente |
2 h |
Processo
de rachar os fios de cipó |
16 h |
Processo
de perfilar os fios de cipó |
5 h |
Manufatura |
16 h |
Tratamento
antifúngico |
1 h |
Total de horas trabalhadas |
57 h |
Tabela 1: Horas trabalhadas para produção de 100 cestinhas
de fundo de compensado.
O longo ciclo de trabalho de 100 cestinhas rende para o artesão aproximadamente
R$ 35,00, ou seja, algo em torno de R$ 0,61 / h. Os artesãos estão reféns deste
sistema, que os obriga a produzir grandes quantidades de peças. Os filhos dos
artesãos trabalham para ajudar os pais, caracterizando trabalho infantil. Esta
alta produção e sobrecarga os artesãos resultam em peças de baixa qualidade.
As necessidades e dificuldades reveladas pelos artesãos na pesquisa de
campo deste TCC seguem concluídas na tabela abaixo, que aponta demandas de
trabalho de Economia Solidária, Design Integral e Manejo Sustentado como
estratégias para uma ação inicial de Desenvolvimento Local.
Necessidades / Dificuldades |
Demandas |
Extração
desordenada do cipó na floresta; Ilegalidade
da extração. |
Estudo
do manejo do cipó na floresta. |
Dificuldade
de transporte dos feixes de cipó da mata. |
Concepção
de um produto ou sistema que facilite o transporte dos feixes de cipó. |
Aprimoramento
dos processos de beneficiamento. |
Concepção
de ferramentas que facilitem e agilizem os processos de beneficiamento. |
Geração
de resíduos sólidos nos processos de beneficiamento da fibra. |
Reaproveitamento
de resíduos sólidos. |
Emissão
de gases tóxicos e poluentes provenientes da queima do enxofre no tratamento
antifúngico. |
Elaboração
de tecnologia apropriada antifúngica. |
Falta
de equipamentos de proteção. |
Identificação
e/ou concepção de equipamentos de proteção. |
Dificuldade
de secagem dos fios de cipó em dias de chuva. |
Concepção
de sistema de secagem para os dias de chuva. |
Dependência
do atravessador (Relação
de exploração e comercialização
injusta). |
Construção
de soluções para uma organização produtiva, de distribuição e comercialização
justa. |
Necessidade
de agregação de valores ético-estético-funcionais aos produtos. |
Promoção
da criatividade entre os artesãos, concepção de novos produtos, embalagens e
postos de vendas. |
Produção
exacerbada; Baixa
renda; Extração
desordenada do cipó na mata. |
Elaboração
de um sistema com maior qualidade e menor quantidade de peças produzidas. |
Falta
de organização produtiva e comercial adequada dos artesãos. |
Treinamentos
para a economia solidária / organização de empreendimento social. |
Falta
de identidade social / territorial. |
Concepção
de identidade visual. |
Falta
de consciência ecológica. |
Capacitação
em educação sócio-ambiental. |
Tabela
2: Necessidades e Demandas.
10. Considerações finais
Para se promover a economia solidária neste contexto é necessária uma articulação
dos artesãos com outros agentes sociais estruturados sob a forma de um empreendimento
social em Garuva. Isto corresponde a um ambiente adequado e saudável, bem como evidencia
um processo de autogestão e uma profunda mudança do sistema atual no seu todo e
nas suas partes.
Este TCC demonstrou que a comunidade de artesãos de cipó
imbé de Garuva apresenta diversas dificuldades e necessidades urgentes. Verificou-se,
assim, demandas para profissionais e pesquisadores de Manejo Sustentado, Design
Integral e Economia Solidária, bem como um grau de complexidade que suscita uma
construção participativa interativa orientada para a auto-mobilização
comunitária. Neste sentido vem sendo implementado um projeto, onde a comunidade
é decisora em todas as ações empreendidas - e nas que ainda serão coordenadas.
Já foram realizadas seções de diagnóstico
participativo para a validação dos problemas e priorização de ações. Artesãos, lideranças
comunitárias, professores universitários, ONG´s,
órgãos públicos estadual e municipal, e pesquisadores independentes interagiram
nos últimos dois anos para construir o Projeto Cipó Imbé. Este projeto está
sendo implementado pelo Centro de Assessoria a Autogestão Popular - CAAP, em
parceria com o Projeto Microbacias 2 / Governo de Santa Catarina e a Empresa de
Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina - EPAGRI. Vislumbra-se
que este projeto seja uma experiência efetiva em favor do Desenvolvimento Local
Solidário.
Bibliografia
citada
ABNT. NBR ISO 14001: 1996
– Sistemas de Gestão Ambiental – Especificação e Diretrizes para Uso. Rio
de Janeiro: ABNT, 1998.
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a la Teoría de los Diseños. México: Ed. Trillas, 1988.
CANCLINI, Nestor García. Culturas
Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
CAPRA, Fritjof. As Conexões
Ocultas – Ciência para uma Vida Sustentável. São Paulo: Ed. Cultrix, 2002.
EPAGRI, Plano Municipal de Desenvolvimento rural de
Garuva – 1998/2002. Secretaria Municipal da Agricultura e Meio Ambiente de
Garuva, 1997.
ICSID. Definition
of Design. 2002.
Disponível em: <www.icsid.org>. Acessado em 20 de junho de 2003.
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Punhos Cerrados” in: Revista Expressão. 1995.
MANU, Alexander. Revista
da Aldeia Humana. Florianópolis: SENAI/LBDI,
1995.
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Carlo. O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis. São Paulo: Ed. USP,
2002.
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MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de
Janeiro: Ed. Bertrand, 6 ed., 2002.
PAPANEK, Victor. Arquitetura e
Design: ecologia e ética. Lisboa: Edições 70, 1995.
[1] Membro do movimento de Design Integral, e bolsista do
Mapeamento de Empreendimentos Econômicos Solidários / SENAES - Secretaria
Nacional de Economia Solidária / MTE - Ministério do Trabalho e Emprego.
[2] Professor do Curso de Design da Universidade do Estado
de Santa Catarina - UDESC, membro do movimento de Design Integral.
[3] Professor do Curso de Design da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, membro do movimento de Design Integral, membro do Fórum Catarinense de Economia Solidária.
[5] Meio Ambiente inclui os
ecossistemas naturais, sociedade e suas inter-relações (NBR
ISO 14001, ABNT).
[6] Segundo Morin
(2002), paradigma refere-se ao conjunto das relações fundamentais de associação
e/ou de oposição entre um número restrito de noções-chave, relações essas que
vão comandar-controlar todos os pensamentos, todos os discursos, todas as
teorias.
[7] Segundo Capra (2002), o
conceito de sustentabilidade foi criado no começo da década de 1980 por Lester Brown, fundador do Instituto Worldwatch.
[8] Com este termo, arte do
pré-capitalismo, Lauer se refere a arte popular e
tradicional, ao artesanato e ao folclore.
[9] As informações a seguir
foram extraídas do “Plano Municipal de Desenvolvimento Rural de Garuva - 1998 /
2002”.
[10] Mãezera é o nome dado à raiz aérea principal da planta pelos produtores de cipó Imbé.
[11] Cochado é o nome dado ao
processo de extração da fibra pelos produtores de cipó Imbé.
[12] Nome dado ao tecido vegetal
intermediário entre a casca e a estrutura interna do cipó pelos produtores de
cipó Imbé.
[13] Nome dado ao processo de
beneficiamento do cipó pelos produtores, cujos fios de cipó são partidos em
várias partes.
[14] Processo na qual se
trabalha o perfil do cipó de modo a reduzir seu diâmetro.
[15] Raspa é um resíduo proveniente do processo de perlilação.
[16] Para referirem-se ao cipó bruto, os produtores
denominam-no de cipó sujo, e para referirem-se ao cipó beneficiado, cipó limpo.