ECONOMIA SOLIDÁRIA E DESIGN INTEGRAL: UMA EXPERIÊNCIA COM ARTESÃOS DO CIPÓ IMBÉ DE GARUVA (SC, BRASIL)

(Área Temática: Relato de Experiência)

 

Roberta Helena dos Santos Tonicelo[1] (designer - robertatonicelo@hotmail.com); Douglas Ladik Antunes[2] (MSc em Engenharia Ambiental - douglasantunes@udesc.br); Mauro De Bonis A. Simões[3] (designer - maurodebonis@udesc.br)

 

Resumo

O desconforto em relação às problemáticas sócio-ambientais geradas pela economia capitalista é um fato concreto. Diante destas problemáticas, o design deve se comportar segundo uma ética que considere as dimensões sociais, políticas, culturais e ecológicas orientadas à Economia Solidária. Tendo em vista estes aspectos, este artigo reflete a emergência do Design Integral. O objeto de estudo da pesquisa relatada trata do Ciclo de Vida do artesanato de cipó Imbé de Garuva, que identificou necessidades e apontou demandas para a melhoria deste sistema, através de pesquisa qualitativa com a comunidade em questão. Entre os resultados verificados, destacam-se a extração desordenada e ilegal de cipó, processos produtivos tecnicamente precários - e impactantes social e ambientalmente -, além da exploração de artesãos por um comércio injusto. Esta pesquisa resultou no Projeto Cipó Imbé, que é pautado em processos de diagnóstico e validação com ferramentas participativas, na busca de soluções de Manejo Sustentado, Design Integral e Economia Solidária. 

 

Palavras-chave: Artesanato; Cipó Imbé; Economia Solidária; Design Integral.

 

1. Introdução

O presente artigo trata de uma experiência iniciada a partir de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Design da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina. O objeto de estudo deste TCC refere-se ao ciclo de vida do artesanato da fibra de cipó Imbé, da região de Garuva - SC.

Santa Catarina é um Estado privilegiado por apresentar uma grande diversidade de espécies animais e vegetais em seus ecossistemas. Entretanto, diversos tipos de fibras vegetais podem ser disponibilizados como matéria-prima para o artesanato e o design através do cultivo e manejo responsáveis dos ecossistemas naturais. O emprego de fibras vegetais no design de produtos industriais e artesanais, quando considerado todo o seu ciclo de vida, além de apresentar uma alternativa de redução dos efeitos negativos ao meio ambiente, pode representar uma forma de valorização do trabalho local, bem como de geração de trabalho e renda em lugares que as dificuldades de sobrevivência mostram-se cada vez mais presentes.

Diante das problemáticas sócio-ambientais atuais geradas pela economia capitalista, o design enquanto atividade projetual deve se comportar de acordo com uma ética que considere não só as questões econômicas, mas também as sociais, políticas, culturais e ecológicas. Considerando todas estas dimensões da sustentabilidade, este trabalho foi orientado para uma nova categoria de design, denominado aqui Design Integral.

Tendo em vista este Design, foram observadas todas as etapas que compõem o ciclo de vida do artesanato de cipó imbé na comunidade de artesãos de Garuva, tais como as técnicas de extração, beneficiamento e manufatura da fibra, bem como sua distribuição, comercialização, uso e descarte. Tinha por objetivo identificar necessidades e dificuldades em cada uma destas etapas, frente aos impactos ecológicos, sociais, culturais e econômicos. Além de identificar possíveis contribuições do Design para a melhoria da qualidade dos produtos, dos processos e das implicações sócio-ambientais relacionadas à esta cadeia produtiva, e, sobretudo, A Economia Solidária desta comunidade de artesãos.

O design é uma arte social[4] e por fazer parte das ciências humanas, a pesquisa de campo foi orientada fundamentalmente pela metodologia das ciências sociais. No trabalho de campo foram entrevistados pequenos produtores de cipó imbé da região de Garuva. A estrutura das entrevistas foi determinada por uma orientação sistêmica - ou pela ótica do Design Integral. 

A finalidade deste TCC foi o de despertar o interesse dos atuais e futuros designers por uma atuação que atenda a um contexto sócio-ambiental, bem como apresentar novas possibilidades para a sua inserção na sociedade focado em demandas do contexto da Economia Solidária.

 

2. Contexto sócio-ambiental no sistema econômico capitalista

No capitalismo, as políticas de desenvolvimento são fundamentadas no crescimento da economia através da superprodução, e pouco leva em conta os seus aspectos sociais e ambientais. A alta produtividade, o desenvolvimento tecnológico acelerado e o imenso consumo de bens desencadeiam uma série de problemas sócio-ambientais. O desemprego, a exclusão social, o deflorestamento, a extinção de espécies, o esgotamento de recursos naturais, etc., são conseqüências deste modelo hegemônico. E suas formas de comercialização estão sempre ligadas a busca do alto lucro através da inovação tecnológica, da diferenciação de produtos e serviços, dentre outras formas capitalista de se obter monopólios. Paul Burkett ressalta “(...) a tendência do capitalismo a devorar, dispor, degradar a natureza ao ponto de ameaçar as condições materiais básicas de reprodução humana” (apud Montibeller-filho, 2001:189).

De acordo com Manzini, “Este sistema como conjunto de ações humanas na sua complexidade, determinou e continua a determinar uma situação insustentável de carga e descarga para o meio ambiente[5]” (2002:325). A economia global não estão apenas destruindo a nossa ligação com a natureza e de uns com os outros, mas também comprometem a diversidade sócio-cultural. Para Capra:

 

O mesmo capitalismo põe em risco e destrói inúmeras comunidades locais pelo mundo inteiro; e, no exercício de uma biotecnologia mal-pensada, violou o caráter sagrado da vida e procurou transformar a diversidade em monocultura, a ecologia em engenharia e a própria vida numa mercadoria (2002:217).

 

Mesmo assim, as indústrias continuam a produzir de tal maneira que parecem não se importar com os agravantes sócio-ambientais do presente e com as probabilidades de um futuro muito problemático. Os desejos por consumo são continuamente estimulados, e a produção se torna cada vez mais intensa, excessiva e perturbadora.

            Alexander Manu, designer radicado em Toronto, diz que “Fomos levados à nossa condição atual pela insegurança e ganância de visão curta tanto de indivíduos quanto de corporações, pelas cócegas da cobiça para estimular o consumo e pelo nosso caso de amor narcotizado com a tecnologia no que esta possui de mais trivial” (1995:14-15). Já para Lutzenberger, um expoente ecologista brasileiro, “(...) é nosso estilo de vida consumista, resultado de nossa cosmovisão antropocêntrica que nos faz ver este nosso planeta, o único vivo que conhecemos (...) como se fosse um mero almoxarifado de recursos gratuitos e ilimitados” (1995:06).

 

3. Sustentabilidade: uma estratégia simultaneamente social, cultural, ecológica e econômica

Em resposta a atual crise global causada pelo modelo de desenvolvimento econômico capitalista dominante, surgiu um novo paradigma[6]: o Desenvolvimento Sustentável[7]. O Relatório de Brundtland, publicado ONU (Organização das Nações Unidas), em 1987, definiu o conceito como o “(..) desenvolvimento que responde às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades” (Montibeller-filho, 2001:48).

Este paradigma pressupõe um conjunto de dimensões que compõe a sustentabilidade, tais como: a social, econômica, ecológica, espacial / geográfica e cultural. Para Sachs esse conjunto deve ser definido da seguinte forma:

 

Sustentabilidade social: o processo deve se dar de maneira que reduza substancialmente as diferenças sociais. E considerar o ‘desenvolvimento em sua multidimensionalidade, abrangendo todo o espectro de necessidades materiais e não-materiais. Sustentabilidade econômica: define-se por uma ‘alocação e gestão mais eficientes dos recursos e por um fluxo regular do investimento público e privado’. Sustentabilidade ecológica: compreende o uso dos potenciais inerentes aos variados ecossistemas compatíveis com sua mínima deterioração. Deve permitir que a natureza encontre novos equilíbrios através de processos de utilização que obedeçam a seu ciclo temporal. Implica também, preservar as fontes de recursos energéticos e naturais. Sustentabilidade espacial/geográfica: pressupõe evitar a excessiva concentração geográfica de populações, de atividade e do poder. Busca uma relação mais equilibrada cidade/campo. Sustentabilidade cultural: significa traduzir o conceito normativo de ecodesenvolvimento em uma pluralidade de soluções particulares, que respeitem as especificidades de cada ecossistema, de cada cultura e de cada local (apud Montibeller-filho, 2001:46-47).

 

O caminho em direção a sustentabilidade requer uma mudança do atual paradigma reducionista / tecnicista / economicista para um paradigma sistêmico / complexo, e, deste modo, promover e consolidar a sustentabilidade em todas as suas dimensões, pois se trata agora de reconhecer e interagir com as complexas redes de inter-relações.

 

4. O Design Integral

É difícil indicar o surgimento histórico do design, pois se considerarmos que se trata da concepção de produtos para a satisfação de necessidades humanas, desde os primórdios o homem concebe suas ferramentas. Segundo Acha, se “Nos referimos al trabajo simple de diseñar, si lo tomamos en el sentido de concebir y de hacer visible gráficamente o en bulto un proyecto de configuración, siempre tomado como lo sustancial del fenómeno debido a su difundida práctica humana en todas las épocas y culturas” (1988:82).

Existem autores que consideram o surgimento do design a partir do processo de industrialização, e, mais especificamente quando se optou por melhorar os produtos em termos estético-funcionais para incrementar o consumo. A tecnologia transformou radicalmente as práticas de produção e as relações humanas. Com a produção em larga escala, verificou-se uma profunda mudança no trabalho e no trabalhador. O processo produtivo saiu das mãos do artesão e passou a ser de domínio das máquinas, destruindo comunidades e culturas tradicionais. Para Morin, “A tecnologia tornou-se, assim, o suporte epistemológico de simplificação e manipulação generalizadas inconscientes que são tomadas por racionalidade” (2002:112). Desde então o design (industrial) é orientado para lógica do consumo.

            Numa época em que as dimensões social e ecológica são cruciais para a continuidade das formas de vida, o design como atividade projetual precisa se comportar segundo uma ética que interaja com as diferentes soluções técnicas, econômicas, sociais, ecológicas, culturais, etc. Segundo Papanek, “(...) o design quando alimentado por uma profunda preocupação espiritual pelo planeta, pelo ambiente e pelas pessoas, resulta numa perspectiva moral e ética” (1995:263). Neste sentido é necessário adotar uma visão sistêmica / complexa para orientar suas práticas, conciliando estas dimensões e promovendo um contexto sócio-ambiental ético e sustentável.

O Conselho Mundial de Sociedades de Design Industrial - ICSID, desde 2002 reconhece esta necessidade, e define o design como:

 

(...) uma atividade criativa, cujo objetivo é estabelecer qualidades múltiplas a objetos, processos, serviços e seus sistemas em todo ciclo de vida. Todavia, design é o fator central de humanização inovativa de tecnologias e o fator crucial da substituição cultural e econômica. (...) Design procura descobrir e investigar relações estruturais, organizacionais, funcionais, expressivas e econômicas, com o intuito de aumentar a sustentabilidade global e proteção ambiental (ética global);

 prover benefícios e liberdade a toda comunidade  humana, individual e coletiva, usuários finais, produtores e protagonistas de mercado (ética social);

 apoiar a diversidade cultural apesar do processo de globalização mundial (ética cultural); e

 fornecer produtos, serviços e sistemas, com aquelas formas que são expressivas (semiótica) e coerentes com sua complexidade (estética) (ICSID, 2002).

 

 

 

É no contexto da ética e da sustentabilidade onde se insere o “Design Integral”. Entre as noções que compõe o conceito de Design Integral é preciso evidenciar que o termo “Integral” supõe uma “integridade”, na qual as partes não podem ser separadas do seu todo, e, nem tampouco, das relações que existem entre as partes. As atividades elaboradas por esta nova categoria de design (entendido aqui como planejamento ou desenho) da realidade, pressupõem a compreensão da integridade das relações do ambiente, e a integridade das relações humanas com a natureza.

Todo produto provoca impacto ambiental (positivo ou negativo), seja em função da extração de matéria-prima da natureza, de seus processos produtivos, e de seu uso e/ou disposição final. Diante destas questões, uma escolha criteriosa e consciente de materiais para um projeto de um produto é essencial. Utilizar materiais renováveis, como o cipó imbé, por exemplo, pode ser uma alternativa responsável de minimização dos impactos ambientais. Porém, a renovação de matérias-primas deve ser entendida em relação a quantidade de recursos que se consome e a sua velocidade de reposição na natureza.

                 Todavia, o Design Integral não considera apenas a questão ecológica, mas também as sócio-culturais, até porque a ecologia também envolve estas dimensões.                                     

 

5. A cultura popular

De modo geral a cultura popular refere-se ao artesanato, ao folclore, a arte tradicional ou a arte do pré-capitalismo[8]. A história apresenta registros da incompreensão e de desprezo pelo popular / tradicional. Segundo Lauer,

 

É com o aparecimento dos impérios teocráticos que a plástica dos dominados [arte popular] passa a ser um assunto estritamente local ou, no melhor dos casos, regional, confrontada a uma plástica imperial que, esta sim, transcende as fronteiras culturais e irradia homogeneidade a partir de um remoto centro de poder. Com a colônia, este centro de poder político torna-se ainda mais remoto e o corte com a plástica dominante se faz drástico (de intracultural passa a ser intercultural) e permeia vários planos: a tecnologia, os suportes materiais dos objetos e da criação plásticas, o signo ideológico da temática, etc. Com a República, desaparece até mesmo o tipo de presença provincial que tinha a plástica colonial (...). A plástica - senhorial e popular - encontra-se, pela primeira vez, completamente ‘só’ no território (1986:21-22).

 

Como afirma Canclini, a subordinação e a exclusão das classes populares e tradicionais é fruto da ação das oligarquias do final do século XIX e início do XX.

 

As oligarquias liberais do final do século XIX e início do XX teriam feito de conta que constituímos Estados, mas apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento subordinado e inconsciente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil revoltas e na migração que ‘transtorna’ as cidades (2000:25).

 

            O mundo artístico impõe fortes restrições aos criadores populares, que assim se tornam indivíduos dependentes do sistema de dominação. Neste contexto de desarticulação política, a arte popular / tradicional torna-se limitada em termos de alternativa para o desenvolvimento local / territorial. A isto Canclini denominou de estratégia de descontextualização e resignificação que a cultura hegemônica estabelece em relação às culturas subalternas. Esta estratégia de desarticulação política por parte da cultura hegemônica faz com que os setores populares da sociedade sobrevivam com extremas dificuldades.

 

6. O artesanato de fibras vegetais

A maior parte das fibras vegetais utilizadas no artesanato brasileiro vem da região amazônica, do Norte e do Nordeste do Brasil. Porém, muitas fibras podem ser encontradas na região Sul e Sudeste, na Mata Atlântica. Algumas fibras vegetais podem ser utilizadas como matéria-prima para o artesanato e o design, através do cultivo e manejo de ecossistemas naturais. É importante ressaltar que o cultivo de tais vegetais dependem de técnicas que devem ser planejadas de forma integrada ao meio ambiente, e esta interação conta com a não poluição de contaminantes no meio ambiente, com conhecimento dos impactos resultantes da inserção de fibras originárias de outras localidades, etc. Quanto ao extrativismo, é importante considerar a quantidade de fibra que se extrai, pois se esta for maior que a capacidade de renovação poderá haver uma instabilidade no ciclo de vida natural da fibra e uma possível resiliência do ecossistema. 

Muitas são as fibras vegetais utilizadas no artesanato brasileiro: cipós, juncos, rattan, taquara, vime, fibra de bananeira, piaçava, sisal, etc. Dependendo da espécie que se utiliza, os processos de beneficiamento e transformação variam; algumas não recebem tratamento e só são colocadas para secar, enquanto que outras são trançadas ainda úmidas. Existem diversos tipos de técnicas de trançado, os tingimentos podem usar corantes naturais extraídos de folhas, sementes ou casca de árvores (como o urucum, o eucalipto, a casca de cebola e açafrão, entre outros), e também são utilizados vernizes e pigmentos artificiais (como a anilina).

É fundamental destacar, a importância da arte do trançado para as culturas tradicionais, como modo de adaptação à natureza para a subsistência, geração de trabalho e renda, e afirmação da identidade cultural e étnica. Ressalta-se, ainda, que o artesanato de fibras vegetais foi pouco abordado na literatura acadêmica até os dias de hoje, sobretudo no campo do design.

 

7. O contexto da pesquisa[9]

O município de Garuva, SC, está localizado a 36 Km de Joinville, a 98 Km de Curitiba e 234 Km de Florianópolis, abrange uma área de 499,7 Km2, sendo 60% constituído de Mata Atlântica. A cidade é popularmente conhecida como o “Paraíso das Águas”, pois possui diversos rios que cortam o município. A população atinge em torno de 11.000 habitantes, sendo 60% dos moradores vivem na região urbana e 40% na região rural. Deste total de habitantes, aproximadamente 4.000 pessoas se dedicam direta ou indiretamente ao artesanato.

Entre os materiais mais utilizados e trabalhados no artesanato da região, se destacam: o cipó imbé e o cipó liaça que são extraídos da Mata Atlântica e o vime que é cultivado nas regiões mais frias do Planalto Catarinense, tal como em Rio Rufino, Bom Retiro, São Joaquim, dentre outras localidades.

O auge da produção de artesanato de cipó do município foi no período de 1965 à 1975. Com a abertura das exportações do governo Collor (1990 - 1992), a concorrência dos produtos de plástico que imitavam o trançado de fibras naturais, contribuiu para abalar os resultados das vendas destes produtos. Desta forma, a partir de 1995, a produção artesanal começou a decair diminuindo as encomendas dos compradores e, conseqüentemente, a margem de lucro, apresentando por isso problemas com os pagamentos. Contudo, muitos artesãos mudaram de profissão a partir desta data.          

O artesanato de fibras vegetais provavelmente foi herdada da cultura indígena, e no caso de Garuva, os índios que lá habitavam eram os carijós. Em Garuva havia uma aldeia com mais de 200 índios no topo do Morro Bugre, onde hoje se encontra a capela do Senhor Bom Jesus, no bairro Três Barras. Em 1912, o governo brasileiro enviou um grupo de bugreiros encarregados de expulsar os índios de perto dos povoados e empurrá-los para dentro das reservas. A verdade é que os bugreiros mataram muitos índios, que eram covardemente atacados à noite; e os poucos que restaram acabaram sendo confinados na reserva indígena de Ibirama. Nas proximidades do rio Três Barras encontra-se um sambaqui, que comprova a presença dos índios que habitaram esta região há muitos séculos.

Em Garuva, o artesanato de cipó imbé é produzido por famílias de pequenos produtores rurais, que, em alguns casos, dependem exclusivamente da renda deste artesanato para sobreviver. Porém, como renda extra, algumas famílias plantam banana, mandioca, palmito, dentre outros cultivos de subsistência. Estes artesãos estão situados entre os mais empobrecidos do município, sobrevivendo com extremas dificuldades. Para o recorte do objeto de estudo, foi escolhido trabalhar junto aos produtores de artesanato de cipó imbé das comunidades rurais de Mina Velha, Palmital e Três barras.

 

8. Metodologia da pesquisa

A pesquisa de campo foi orientada fundamentalmente pela metodologia das ciências sociais. O trabalho de campo da presente pesquisa foi iniciado por meio de entrevistas com os pequenos produtores / artesãos de cipó imbé. Os objetivos da pesquisa de campo foram: 1. Identificar as necessidades e dificuldades de cada etapa do ciclo de vida do artesanato de cipó imbé de Garuva, frente aos impactos sociais, ecológicos, culturais e econômicos; 2. Identificar possíveis contribuições do Design  para a melhoria da qualidade dos produtos, dos processos e das implicações sócio-ambientais, e da melhoria da qualidade de vida desta comunidade e do aumento de suas rendas.

Em campo adotou-se o método de pesquisa qualitativa, com entrevistas semi-estruturadas e registros fotográficos.

 

9. Resultados da pesquisa

As fibras de cipó imbé são raízes aéreas (figura 1) extraídas da Mata Atlântica, podendo ser encontradas em diversos tipos de árvores. Crescem a partir da “mãezera”[10], raiz que fica no topo das árvores, de cima para baixo e enraízam-se no solo. A extração da fibra é realizada pelos produtores duas vezes por semana, num ciclo que se estabelece ao longo do ano todo. Há duas maneiras de extrair o cipó da mata: por corte dos fios de cipó, onde os produtores sobem nas árvores através de uma vara e com uma faca cortam o cipó; ou por cochado[11], cujos produtores seguram na ponta de baixo do fio de cipó torcendo-o até que se solte da mãezera.

Após extrair a fibra, procede-se para a organização dos fios de cipó em feixes de 60 a 150 fios, com aproximadamente 30 e 60 quilos, respectivamente. Estes feixes são colocados nos ombros e transportados até as casas dos produtores. É percorrida uma distância de 6 a 10 Km para encontrar a fibra no “mato”, e isto equivale mais ou menos a duas horas de caminhada.

O motivo que explica tamanha distância existente entre o local de extração e o ponto de partida dos trabalhos de extração do cipó é o fato de estar diminuindo o cipó na mata. Apesar dos artesãos terem conhecimento de como se deve retirar o cipó da mata de modo a não extinguí-lo, o número crescente de novos artesãos tem impactado esse ecossistema, já com perda de sustentabilidade ecológica. Mesmo assim, não se deve desconsiderar o conhecimento empírico dos extrativistas com relação ao ciclo natural da fibra. É importante evidenciar que poucos estudos foram realizados em favor de um plano de manejo desta fibra, o que poderia legalizar a extração de cipó em Garuva.

Depois de extraído o cipó, ocorre o beneficiamento da fibra, que compreende as seguintes etapas: descascamento, raspagem do “limo”[12], secagem, processo de “rachar”[13] a fibra e o processo de perfilar[14] a fibra.

Os processos de beneficiamento ocupam 59 % do tempo de trabalho - ou 32 horas -, e constatou-se a necessidade de agilizar e facilitar tais processos (ver tabela 1). Nestes processos verificou-se a necessidade de desenvolver ferramentas para tornar o trabalho mais ágil e oferecer uma maior eficiência.

Os processos de beneficiamento da fibra de cipó são grandes geradores de resíduos sólidos, e as emissões de CO2 provenientes da queima dos resíduos (como a casca, o limo e a raspa[15]) são problemáticas para a saúde dos artesãos, e nocivas para o meio ambiente. A concepção de equipamentos de proteção para os processos de beneficiamento e manufatura, são demandas de design importantes (o limo, por exemplo, é um resíduo que provoca coceiras que irritam a pele dos produtores).

De 50 Kg de cipó bruto obtém-se 5 Kg de cipó beneficiado[16], ou seja, 90% da matéria-prima se perde atualmente no beneficiamento destas fibras, que consiste em casca, limo, raspa e água. Depois de beneficiado, os fios de cipó são enrolados e armazenado em local seco e coberto, geralmente dentro das casas dos produtores. Observou-se, também, a dificuldade dos produtores para a secagem dos fios de cipó em dias de chuva. É grande a manobra que os produtores fazem para secar os fios nesses dias, colocando-os em cima do fogo ou em cima do fogão à lenha.

Finalmente, a fibra de cipó está beneficiada e pode ser trançada. Existem aproximadamente 50 modelos de peças, tais como: cestos para pães, cestos para arranjos de flores, molduras para espelho, luminárias de teto, chapéus, porta-azeite, enfeites, dentre outros. Porém, as peças também podem ser produzidas de cipó bruto. Utiliza-se apenas como ferramenta, “fôrmas” de madeira que consistem em um molde positivo da peça cujo artesão trança em volta dele. Estas fôrmas são utilizadas para trançar as peças mais complexas, que são trazidas pelo atravessador.

Para tornar o processo da manufatura mais rápido, os artesãos utilizam um fundo de madeira compensada (Figura 2), de diversos formatos - coração, estrela, lua, etc. - com furos nas bordas, por onde passam os fios de cipó. Desta forma, o fundo substitui o fundo trançado. As peças com compensado têm preço mais baixo, já que não precisam trançar o fundo - que é a etapa mais lenta do processo de manufatura.

Por terem preços baixos, as peças com fundo de compensado têm mais encomendas e, portanto, são produzidas em maiores quantidades. Na maioria dos casos, os fundos de compensado também são trazidos pelo atravessador, que desconta o valor desses fundos do preço final das peças. A produção é feita conforme a encomenda do atravessador e varia entre 1.000 e 1.200 peças por mês, dependendo da época do ano (atingindo uma renda de aproximadamente 200 reais). Quando se trata de uma peça pequena - com fundo de compensado -, uma pessoa consegue produzir 100 peças por dia, no máximo.

Os entrevistados reclamaram que o preço pago pelo atravessador não é justo: “Ele ganha em cima das costas da gente. Não é valorizado o trabalho da gente. É um serviço muito sofrido, tem que andar no mato e ainda chega em casa essa trabalheira que você está vendo”.

Apenas um entrevistado não vende para os atravessadores: “Eu não vendo para os atravessadores porque eles não pagam o preço que eu quero, então eu vendo para as bancas da estrada e para lojas aqui em Garuva”. É significativo que este artesão não depende exclusivamente da venda deste artesanato, e que a maior parte de sua renda se concentra na venda de palmeira real e a banana que planta. Portanto, os atravessadores inserem uma margem de lucro de 100% antes de venderem aos lojistas.

Os artesãos / produtores não criam novos produtos, e desenvolvem as mesmas peças de quando aprenderam a técnica. Por este motivo, enjoam do que produzem, causando, conseqüentemente, uma baixa auto-estima, e um trabalho não valorizado por eles mesmos.

Após a manufatura, as peças recebem um tratamento contra. Este tratamento consiste em colocar as peças numa estufa onde é queimado o enxofre em pó. Tal etapa do processo emite gases, que além de poluir o ambiente, pode prejudicar a saúde dos artesãos. Eles necessitam uma tecnologia apropriada antifúngica. Reduzir as emissões geradas - gasosas, líquidas ou sólidas - é uma ação importante.

Após este longo processo de produção, as peças são vendidas aos atravessadores, que, por sua vez, se encarregam de tingi-las com anilina (corante artificial) para agregar valor. Um atravessador assumiu que o comércio não é justo para o artesão e que a única forma de melhorar a vida dos artesãos será oferecendo maior apoio e orientação a eles. Estas peças são distribuídas para diversas regiões do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul, e também para Santa Catarina. Os pontos de venda consistem em floriculturas, lojas de artesanato, boxes de mercados públicos, entre outros.

Segue abaixo uma tabela detalhada de todas as etapas da cadeia produtiva, que envolve o tempo aproximado de trabalho que um artesão leva para produzir 100 cestinhas de fundo de compensado.

 

Etapas da cadeia produtiva

(100 fios de cipó)

Valor aproximado de horas trabalhadas

Extração

6 h

Descascamento da fibra

3 h

Raspagem do limo

8 h

Secagem em dias de sol quente

2 h

Processo de rachar os fios de cipó

16 h

Processo de perfilar os fios de cipó

5 h

Manufatura

16 h

Tratamento antifúngico

1 h

Total de horas trabalhadas

57 h

Tabela 1: Horas trabalhadas para produção de 100 cestinhas de fundo de compensado.

O longo ciclo de trabalho de 100 cestinhas rende para o artesão aproximadamente R$ 35,00, ou seja, algo em torno de R$ 0,61 / h. Os artesãos estão reféns deste sistema, que os obriga a produzir grandes quantidades de peças. Os filhos dos artesãos trabalham para ajudar os pais, caracterizando trabalho infantil. Esta alta produção e sobrecarga os artesãos resultam em peças de baixa qualidade.

As necessidades e dificuldades reveladas pelos artesãos na pesquisa de campo deste TCC seguem concluídas na tabela abaixo, que aponta demandas de trabalho de Economia Solidária, Design Integral e Manejo Sustentado como estratégias para uma ação inicial de Desenvolvimento Local.

 

Necessidades / Dificuldades

Demandas

Extração desordenada do cipó na floresta;

Ilegalidade da extração.

Estudo do manejo do cipó na floresta.

Dificuldade de transporte dos feixes de cipó da mata.

Concepção de um produto ou sistema que facilite o transporte dos feixes de cipó.

Aprimoramento dos processos de beneficiamento.

Concepção de ferramentas que facilitem e agilizem os processos de beneficiamento.

Geração de resíduos sólidos nos processos de beneficiamento da fibra.

Reaproveitamento de resíduos sólidos.

Emissão de gases tóxicos e poluentes provenientes da queima do enxofre no tratamento antifúngico.

Elaboração de tecnologia apropriada antifúngica.

Falta de equipamentos de proteção.

Identificação e/ou concepção de equipamentos de proteção.

Dificuldade de secagem dos fios de cipó em dias de chuva.

Concepção de sistema de secagem para os dias de chuva.

Dependência do atravessador

(Relação de exploração e

comercialização injusta).

Construção de soluções para uma organização produtiva, de distribuição e comercialização justa.

Necessidade de agregação de valores ético-estético-funcionais aos produtos.

Promoção da criatividade entre os artesãos, concepção de novos produtos, embalagens e postos de vendas.

Produção exacerbada;

Baixa renda;

Extração desordenada do cipó na mata.

Elaboração de um sistema com maior qualidade e menor quantidade de peças produzidas.

Falta de organização produtiva e comercial adequada dos artesãos.

Treinamentos para a economia solidária / organização de empreendimento social.

Falta de identidade social / territorial.

Concepção de identidade visual.

Falta de consciência ecológica.

Capacitação em educação sócio-ambiental.

Tabela 2: Necessidades e Demandas.

 

10. Considerações finais

Para se promover a economia solidária neste contexto é necessária uma articulação dos artesãos com outros agentes sociais estruturados sob a forma de um empreendimento social em Garuva. Isto corresponde a um ambiente adequado e saudável, bem como evidencia um processo de autogestão e uma profunda mudança do sistema atual no seu todo e nas suas partes.

Este TCC demonstrou que a comunidade de artesãos de cipó imbé de Garuva apresenta diversas dificuldades e necessidades urgentes. Verificou-se, assim, demandas para profissionais e pesquisadores de Manejo Sustentado, Design Integral e Economia Solidária, bem como um grau de complexidade que suscita uma construção participativa interativa orientada para a auto-mobilização comunitária. Neste sentido vem sendo implementado um projeto, onde a comunidade é decisora em todas as ações empreendidas - e nas que ainda serão coordenadas.

foram realizadas seções de diagnóstico participativo para a validação dos problemas e priorização de ações. Artesãos, lideranças comunitárias, professores universitários, ONG´s, órgãos públicos estadual e municipal, e pesquisadores independentes interagiram nos últimos dois anos para construir o Projeto Cipó Imbé. Este projeto está sendo implementado pelo Centro de Assessoria a Autogestão Popular - CAAP, em parceria com o Projeto Microbacias 2 / Governo de Santa Catarina e a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina - EPAGRI. Vislumbra-se que este projeto seja uma experiência efetiva em favor do Desenvolvimento Local Solidário.  

 

Bibliografia citada

ABNT. NBR ISO 14001: 1996 – Sistemas de Gestão Ambiental – Especificação e Diretrizes para Uso. Rio de Janeiro: ABNT, 1998.

ACHA, Juan. Introducción a la Teoría de los Diseños. México: Ed. Trillas, 1988.

CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas – Ciência para uma Vida Sustentável. São Paulo: Ed. Cultrix, 2002.

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LAUER, Mirko. Crítica do Artesanato: plástica e sociedade nos Andes Peruanos. São Paulo: Nobel, 1983.

LUTZENBERGER, José. “De Punhos Cerrados” in: Revista Expressão. 1995.

MANU, Alexander. Revista da Aldeia Humana. Florianópolis: SENAI/LBDI, 1995.

MANZINI, Ezio; VEZZOLI, Carlo. O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis. São Paulo: Ed. USP, 2002.

MONTIBELLER, Gilberto. O Mito do Desenvolvimento Sustentável. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, 6 ed., 2002.

PAPANEK, Victor. Arquitetura e Design: ecologia e ética. Lisboa: Edições 70, 1995.



[1] Membro do movimento de Design Integral, e bolsista do Mapeamento de Empreendimentos Econômicos Solidários / SENAES - Secretaria Nacional de Economia Solidária / MTE - Ministério do Trabalho e Emprego.

[2] Professor do Curso de Design da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, membro do movimento de Design Integral.

[3] Professor do Curso de Design da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, membro do movimento de Design Integral, membro do Fórum Catarinense de Economia Solidária.

 

[5] Meio Ambiente inclui os ecossistemas naturais, sociedade e suas inter-relações (NBR ISO 14001, ABNT).

[6] Segundo Morin (2002), paradigma refere-se ao conjunto das relações fundamentais de associação e/ou de oposição entre um número restrito de noções-chave, relações essas que vão comandar-controlar todos os pensamentos, todos os discursos, todas as teorias.

[7] Segundo Capra (2002), o conceito de sustentabilidade foi criado no começo da década de 1980 por Lester Brown, fundador do Instituto Worldwatch.

[8] Com este termo, arte do pré-capitalismo, Lauer se refere a arte popular e tradicional, ao artesanato e ao folclore.

[9] As informações a seguir foram extraídas do “Plano Municipal de Desenvolvimento Rural de Garuva - 1998 / 2002”.

 

[10] Mãezera é o nome dado à raiz aérea principal da planta pelos produtores de cipó Imbé.

[11] Cochado é o nome dado ao processo de extração da fibra pelos produtores de cipó Imbé.

[12] Nome dado ao tecido vegetal intermediário entre a casca e a estrutura interna do cipó pelos produtores de cipó Imbé.

[13] Nome dado ao processo de beneficiamento do cipó pelos produtores, cujos fios de cipó são partidos em várias partes.

[14] Processo na qual se trabalha o perfil do cipó de modo a reduzir seu diâmetro.

[15] Raspa é um resíduo proveniente do processo de perlilação.

[16] Para referirem-se ao cipó bruto, os produtores denominam-no de cipó sujo, e para referirem-se ao cipó beneficiado, cipó limpo.