O ESCORPIÃO, O SAPO,

 e economia contra a política

 

Área temática: Trabalho na Sociedade Contemporânea

 

Henrique Parra[1] - polart@riseup.net - Doutorando no OLHO-UNICAMP (Laboratório de Estudos Audio-Visuais); pesquisador no CENCIB (Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Cibercultura) e integrante do Centro de Mídia Independente - São Paulo.

 

Resumo

O artigo tem como foco a análise crítica das dificuldades enfrentadas na implementação do Programa Oportunidade Solidária no Município de São Paulo. A ênfase do texto estará nas condições e limitações sociais e políticas para a criação de uma política pública de economia solidária.

 

Palavras-chave: políticas públicas, economia solidária, governo, sociedade civil

 


 

Era uma vez...(não me lembro ao certo a fonte dessa parábola em minha memória) um sapo e um escorpião que se encontram na terra, às margens de um rio. O escorpião, educadamente, cumprimenta o sapo e pergunta:

            - Sapo, eu preciso atravessar o rio, quero chegar à outra margem. Mas eu não sei nadar, seria incapaz de fazê-lo sozinho. Será que você poderia me ajudar e me levar nas suas costas até a outra margem?

O sapo, surpreso pela pergunta, lhe responde:

            - Mas escorpião, se eu levá-lo em minhas costas você vai me picar e eu morrerei!

A está esta proposição o escorpião responde logicamente:

            - Oras, eu não sou suicida. Você acha que eu estou louco! Se eu te picar eu também morreria afogado, é óbvio. Você pode confiar em mim.

            - É....... faz sentido! Tá bom, eu posso te levar ao outro lado, respondeu o sapo.

E ambos se juntaram para cruzar o rio, rumo à outra margem.

 

Neste instante, proponho que pensemos o escorpião como as ações ecônomicaseconômicas hegemônicas. O sapo, por sua vez, parece-me o social, ou o próprio tecido social. A travessia do rio corresponderia à história que está acontecendo e a outra margem ao futuro. A ecologia entre o sapo e o escorpião é a própria vida humana na Terra, e a discussão entre ambos cria a Política. Ela define o local dos corpos e sua participação no mundo, ou a parte de cada um no todo e o próprio destino do processo.

 

Felizmente, as imagens que tal história possa mobilizar serão sempre mais ricas em significados que este texto, que se propõe refletir sobre os desafios e vicissitudes dessas relações por meio de um recorte específico. O percurso do sapo e do escorpião talvez ajude na interpretação sobre algumas das dificuldades enfrentadas na implementação do Programa Oportunidade Solidária, responsável pelo fomento à constituição de empresas populares - orientadas por princípios autogestionários -   na cidade de São Paulo durante a gestão petista 2001-2004. Explico:

 

De forma muito sintética, o Programa Oportunidade Solidária (OSOL) foi concebido e executado pela Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) como parte de um conjunto de 9nove programas sociais complementares que visavam distribuir renda diretamente e criar condições para geração de trabalho sob diversas formas (autônomo, empregos, cooperativo-associativo, micro-empreendimentos, etc.). Basicamente os programas estavam divididos em 3 três grandes eixos: redistributivos; emancipatórios e de desenvolvimento local[2].

 

As ações denominadas redistributivas agrupavam os  quatro programas (Renda Mínima, Bolsa Trabalho, Começar de Novo e Operação Trabalho) que distribuíam recursos financeiros diretamente às famílias participantes, inscritas através de cadastramento universal (com banco de dados centralizado e sob sigilo da SDTS) e em seguida selecionadas através dos critérios, importante frisar, instituídos em lei mMunicipal. Cada um dos 4 quatro programas tinha um público etário específico e definia as condicionalidades (crianças nas escolas, participação em cursos de capacitação, etc.) para o recebimento do recurso pecuniário mensal que tinha duração e valores diferenciados para cada programa. Dizemos que esses programas eram a porta de entrada para o que ficou conhecido como Estratégia Paulistana de Inclusão Social, pois eram estes os programas que definiam o acesso às demais ações propostas pela SDTS.

 

O outro bloco de programas agrupava as iniciativas emancipatórias, ou seja, atividades complementares oferecidas aos participantes dos programas redistributivos objetivando a geração de trabalho e renda. Aqui, havia 3 três grandes linhas: cursos de capacitação profissional, banco de micro-crédito e atividades de incubação de empreendimentos populares e solidários (é sobre este último que iremos discorrer mais detalhadamente).

 

Finalmente, o terceiro eixo programático, tinha 2 dois programas (São Paulo Inclui e Desenvolvimento Local) que visavam, respectivamente: uma melhor alocação espacial dos postos de trabalho disponíveis (um embrião de um sistema público de intermediação de trabalho); e o fomento à constituição de fóruns setoriais (conforme certos segmentos econômicos: têxtil, plásticos, rede hoteleira, entre outros) com correspondência em fóruns regionais (com base nas divisões administrativas da prefeitura).

 

Na teoria, os 9 nove programas deveriam funcionar de maneira integrada, complementar e transversalmente. Na prática a coisa era um pouco mais complexa. Se por um lado os programas tiveram uma enorme abrangência (no total chegou a envolver aproximadamente 490 mil famílias), isso significou desafios, tanto no nível local como no nível macro-estrutural, que muitas vezes escapavam às ferramentas que estão disponíveis a um governo municipal (ainda que se tratasse de uma cidade-global). Cito, por exemplo, os impactos de uma política nacional de juros altos que, na elevação de apenas um ponto percentual encerraria algumas dezenas de milhares de postos de trabalho na cidade de São Paulo no mês subsequentesubseqüente. Ou seja, em não havendo sincronia entre as políticas locais e federais os resultados poderiam ser rapidamente desconstruídos.

 

Apesar dos limites à Estratégia Paulistana, vale destacar alguns dos resultados atingidos: a distribuição direta de recursos financeiros aos beneficiários; a maneira como os programas foram implementados tendo em vista o estabelecimento de direitos cidadãos (com base em critérios de universalização no acesso baseados em lei) se orientando por novos padrões de política social; indução ao desenvolvimento local, uma vez que quando os recursos alocados às famílias eram combinados a outras iniciativas do governo municipal segundo critérios territoriais, permitiram uma circulação de  recursos nos distritos de maior exclusão sócio-economica[3], desencadeando sinergias econômicas locais.

 

Descrito o contexto em que se localiza o tema de nossa discussão, voltemos a ele: o Programa  Oportunidade Solidária[4]. Pensado originalmente como um programa de formação de empresas populares, rapidamente ficou evidente que, junto à população beneficiária (dado o grau de precariedadezação e fragilidade social), tal tarefa não poderia ficar limitada aà cursos de capacitação à maneira sebrariana. Foram então adotadas estratégias de incubação desses empreendimentos através da assessoria direta de uma rede de cerca de 15 quinze incubadoras que eram em sua maioria organizações não-governamentais (associações, institutos e cooperativas) e programas extensionistas ligados à universidades da cidade de São Paulo.

 

Com o passar o tempo, o Programa foi ampliando sua área de atuação para dar conta das necessidades das micro-empresas, cooperativas e associações em formação pelos beneficiários (em sua maioria pessoas com mais de 40 quarenta anos de idade, muitos com baixíssima qualificação e quase todos com renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo).

 

Ora, a constituição de uma empresa não é uma simples equação. A primeira questão a ser enfrentada era: como gerar renda em regiões onde há baixa atividade econômica, dado que os programas foram primeiramente implementados em áreas de extrema pobreza? Uma coisa é montar um restaurante no Largo da Batata, outra coisa é criar um restaurante no Lajeado. Em seguida, como iniciar um empreendimento com capital zero? Para isso, foi preciso criar uma linha de crédito específica através do Programa Banco do Povo, com uma metodologia própria, capaz de avaliar a capacidade de financiamento/pagamento de um empreendimento que estava começando suas atividades. Ainda assim, como que fazer com os limites de qualificação profissional dos beneficiários? E como melhorar a qualidade dos produtos e serviços oferecidos por eles? Ou ainda, como desenvolver circuitos de distribuição, comercialização e consumo? Como disponibilizar tecnologia aos produtos e processos para agregar valor, e que tecnologias seriam adequadas a esses empreendimentos?

 

O Programa Oportunidade Solidária[5], ao longo dos seus três anos e meio de existência, procurou junto à rede de instituições que vieram a constituir o Programa (as incubadoras que implementavam conjuntamente as ações e participavam dos fóruns coletivos de gestão) desenvolver um conjunto de instrumentos necessários à viabilização econômica dessas iniciativas. Estes instrumentos buscavam dar respostas àa algumas das questões expressas acima. Entretanto, eles eram relativamente precários, dada as próprias condições de implementação do Programa e por outras razões que irei explorar mais adiante. A própria inexistência de um marco legal adequado a essas iniciativas econômicas (como regulamentá-las juridicamente?) limitava as possibilidades de fomento. Por exemplo, como utilizar o poder de compra do Estado para incentivar e fortalecer a produção inicial de empreendimentos econômicos que tinham objetivos sociais (inseridos dentro de uma política de geração de trabalho e renda)? Para isso, seria necessário instituir novas regulamentações.

 

Com isso, o que pretendo discutir é que a fragilidade dos empreendimentos em termos da sua   sobrevivência econômica é, para além das condições dos individíduos-beneficiários, de natureza política. Talvez a maior dificuldade enfrentada pelo Programa tenha sido justamente a de instituir um campo político dentro do qual se poderia-se interrogar as condições de atuação desses empreendimentos, ou seja, criar um campo político para instalar uma clivagem e desnaturalizar,   portanto politizar, as próprias condições/determinações em que a atividade econômica está encerrada.

 

Pode-se dizer que o OSOL começou a atuar inspirado por um movimento ainda em gestação, que reúne um conjunto bastante heterogêneo de experiências. De uma certa maneira, todas essas iniciativas de produção alternativa procuram enraizar socialmente as relações econômicas (intra e extra-empreendimentos) através de regulações sociais pautadas por princípios democráticos e solidários (autogestão e co-operação, em detrimento de heteronomia do capital e competição intercapitalista). Tais experiências têm sido agrupadas sob diferentes denominações, que também conformam um campo de disputa entre elas: economia solidária, sócio-economia-solidária, autogestão, cooperativismo, associativismo, entre outras. Se por uma lado a origem de algumas dessas experiências já soma mais de dois séculos, de outro elas tiveram um uma recente florescência no Brasil na segunda metade dos anos 1990, impulsionadas sobretudo por instituições não-governamentais de fomento (como associações, institutos e programas universitários extensionistas) que estimularam processos de organização popular, operária, rural e urbana, que buscavam outras formas de geração de renda. Muito rapidamente, já no início do século XXI, alguns governos municipais, estaduais e mais recentemente no nível federal, passaram a integrar algumas das reivindicações dessas iniciativas às suas ações governamentais. O Programa Oportunidade Solidária é um exemplo disso.

 

Com a mesma velocidade (tenho a impressão que mais rapidamente, na realidade) foram criadas novas ações de governos (ainda não estamos falando de políticas públicas) que precisavam dar resposta para questões que ainda não estavam exatamente formuladas de maneira madura ou consciente por este movimento em gestação. Ou seja, apesar desse movimento ter conseguido de forma ágil (pelo menos na escala histórica) sensibilizar os novos governos para que adotassem ações de fomento a essas iniciativas, ainda não havia propriamente um campo político instituído pelo conjunto de atores ligados a esta temática para dar centralidade e efetividade a esta agenda. Ainda que o governo tivesse a percepção da necessária intervenção no campo político, este entendimento, pelo menos nas condições de desencadear ações sociais mais amplas, não era manifesto pelo conjunto desses atores.

 

A percepção de que a viabilidade dos empreendimentos populares formados depende de um conjunto de fatores internos e externos a eles aponta para outros problemas. Ainda que o OSOL pudesse   desenvolver aqueles instrumentos de apoio às empresas de trabalhadores, resta saber quais seriam as especificidades desses instrumentos que seriam exigidas afim de que pudessem dar conta das necessidades internas desses empreendimentos e responder ao mesmo tempo às exigências do mercado em que os empreendimentos estão inseridos. Costuma-se perguntar, equivocadamente, se os empreendimentos autogeridos são eficientes. Melhor seria indagar o que é eficiência, e em que condições essa eficiência se realiza?

 

As possibilidades de existência e de sobrevivência dos empreendimentos populares e solidários, ou mais genericamente das empresas de trabalhadores que se orientam por princípios autogestionários, estão diretamente relacionadas à dimensão social e política que permeia todas as relações econômicas. O sucesso de um determinado modo de produção depende da distribuição das forças sociais e políticas na sociedade. A eficiência de determinada forma organizativa e tecnológica é também o resultado de um arranjo de forças sociais que combinam fatores técnicos (que conferem vantagens competitivas) com fatores sociais e políticos que criam um ambiente econômico propício para tais técnicas.

 

A própria eficiência surge como o reflexo de uma relação de poder, que traduz uma capacidade de  mobilizar recursos materiais e simbólicos a seu favor[6]. Por exemplo, a relação entre os direitos, os títulos de propriedade e as responsabilidades dos indivíduos para com a produção e a distribuição da riqueza socialmente gerada, modificam-se na história. Portanto, uma técnica nunca está dissociada do seu contexto social de origem, e a eficiência econômica só pode ser analisada na perspectiva histórica da sua relação com as demais instituições sociais: no mundo que agora vislumbramos, tanto a taxa como a direção do crescimento econômico dependem da distribuição dos títulos econômicos, e como essa distribuição está ligada ao poder Estatal para privilegiar ou punir grupos e atividades, isso permite dizer que o desenvolvimento econômico reflete a política[7].

 

Para dar concretude a esta discussão, tomemos alguns exemplos vividos na implementação do Programa Oportunidade Solidária: a inexistência de capacitação técnica adequada aos empreendimentos populares (todo o conjunto de instituições estatais que prestam este tipo de serviço estão voltadas voltado para um outro modelo de organização do trabalho); a estrutura de financiamento público funciona muito bem para certos tipos de empresas (a grande empresa-corporação) mas não é capaz de apoiar em condições aceitáveis outros modelos produtivos, uma vez que opta por um certo tipo ideal de empresa que deve ser fomentado por ser considerado mais eficiente; as regulamentações fiscais incentivam alguns setores produtivos e penalizam outros; as tecnologias criadas visam reforçar determinados arranjos sócio-técnicos (máquinas que fortalecem uma certa divisão sócio-técnica do trabalho); a falsa universalidade dos processos licitatórios são bastante adequados para tornar o poder de compra do estado um instrumento centralizador do poder econômico, basta verificar as condições de avaliação dos serviços prestados por empresas terceiras.

 

Em poucas palavras, por detrás da aparente neutralidade das condições de competição inter-capitalista (como em qualquer outra forma de produção) existe todao uma configuração social que determina previamente as condições em que essa competição irá se dar, privilegiando uns em detrimento de outros. Neste caso, sugiro pensar que ser eficiente é ser capaz de mobilizar a seu favor o conjunto de fatores materiais e simbólicos que fortaleçam sua posição dentro de um campo de conflito.

 

Portanto, como enuncia Lojkine[8], se o domínio do econômico e do social, para abordar o campo político, no sentido forte do termo: o lugar de discussão e elaboração das regras de governo de uma sociedade por si mesma. É o questionamento, o conflito e a disputa sobre as condições e o conteúdo dessas regras que instituem a política. Tomo o conceito de político tal qual entendido por Rancière[9], como o ato de ruptura da forma como a riqueza social e a capacidade de autodeterminação estão distribuídas entre os diferentes grupos sociais que participam de uma certa comunidade.

 

Neste sentido, pode-se dizer que (e esta é uma opinião bastante pessoal) o Programa Oportunidade Solidária, o conjunto de atores que dele fizeram parte (a rede de instituições participantes e apoiadoras); outros grupos municipais e regionais ligados à temática da economia popular e solidária; bem como os beneficiários diretos do Programa, não foram capazes de transcender sua esfera de atuação para a criação de uma esfera política mais ampla. Aponto em seguida alguns fatores mais amplos que formam o contexto das limitações enfrentadas:

 

1. No interior do próprio governo municipal não houve o convencimento da importância e relevância das estratégias propostas no fomento aos empreendimentos populares. Isso ficava evidente nas dificuldades internas encontradas para estabelecer ações conjuntas e transversais com outros órgãos municipais, seja para fortalecer iniciativas ou para buscar caminhos de institucionalização (no sentido de estabelecer um novo patamar normativo-legal). As ações de outros atores governamentais, ainda que permeadas de boa vontade, alternavam entre propostas assistenciais ou ações de mera sobrevivência marginal (economia da pobreza). Aqui, fomos incapazes de comunicar, debater e criar coletivamente um campo político efetivo no interior do próprio Governo.

 

2. As relações entre o conjunto das entidades parceiras forami bastante marcadaso por conflitos e disputas. Apesar de ter ocorrido significativos avanços, quando comparamos o primeiro ano do Programa aos últimos momentos da gestão, persistiram rivalidades de cunho político-ideológico manifestas sob diversas formas, seja travestida nas diferenças metodológicas de atuação ou no entendimento de qual deveria ser o papel do Estado, configurando diversas modalidades de relação estado-sociedade civil organizada.

 

3. Numa perspectiva ampliada (para além do próprio Programa), os dez anos anteriores de políticas neoliberais, a crescente desresponsabilização público-estatal, combinadas à terceirização de algumas funções estatais para o setor não-governamental, criaram estruturas de financiamento que acabaram por instituir práticas anti-públicas no seio da própria sociedade civil organizada. Reproduzindo muitos dos vícios das estruturas sindicais e partidárias, algumas ONGs, procuram estabelecer novas relações de caráter privatista, tomando o Estado como mero financiador de projetos individuais. Uma outra direção possível seria o fortalecimento dos espaços públicos e coletivos criados, contribuindo para melhor democratizá-lados, e portanto, efetivzar sua dimensão política. Mas para isso seria necessário estabelecer outros critérios de participação e projetos em bases mais solidárias e públicas. Se por um lado havia esta nova-velha cultura do setor não-governamental, o próprio poder municipal também dispunha de instrumentos historicamente instituídos que dificultavam o estabelecimento dessa esfera pública e democrática. Afinal, como democratizar a democracia?

 

4. Numa outra dimensão, os beneficiários do Programa (as pessoas inscritas nos programas sociais)   tinham pouca relação direta com o poder público. O fato de serem as ONGs executoras da ação governamental criava inúmeras mediações entre o poder público e o beneficiário final. Isso dava margem a vários distorçõesvárias distorções: a) maior distanciamento entre cidadão e estado; b) estabelecimento de relações assistenciais, dependendo da forma de atuação da ONG; c) criação de vínculos clientelistas entre ONG e beneficáriosbeneficiários; d) não não-percepção do Programa como um Direito, mas como um benefício oferecido por um ente privado, afinal quem estava lá não era o Estado, mas a entidade X ou Y. Se a opção política do governo, mas também as limitações estruturais para se fazer de uma outra forma, levaram a este modelo de implementação de uma ação governamental (parceria público-privado), deveríamos pensar em criar outros mecanismos de controle social e de maior participação direta dos beneficáriosbeneficiários finais nos fóruns de gestão, avaliação e deliberação no interior do próprio governo.

 

5. Inexistência de um movimento social de economia popular e solidária. Apesar da quantidade, diversidade e pluralidade de entidades que atuam nesta temática, o perfil mais presente é o de entidades de fomento. Não há, por parte daqueles que efetivamente integram e constituem os empreendimentos populares e solidários um nível de organização, mobilização e percepção política da sua atuação. Estamos muito mais no nível de uma ação de sobrevivência econômica imediata do que no nível de uma ação política emancipatória. Nunca é demais lembrar, num momento em que as fronteiras andam um pouco obscurecidas, que articulações entre ONGs não configuram necessariamente um movimento social. Tal confusão fica evidente na diversa produção discursiva que envolve o tema bem como nos problemas de representatividade política expressa em vários Fóruns em que se reúnem estes atores.

 

Finalmente, voltamos à história terrena ... o escorpião sobe nas costas do sapo e ambos começam a travessia. O sapo está habituado ao ambiente, o trajeto lhe parece tranquilotranqüilo. O escorpião seguro nas costas do sapo ainda troca algumas palavras com ele, que devido ao esforço não pode muito falar, pois precisa se concentrar no exercício. Ele nada, nada, nada........

Eis que, no meio do rio, repentinamente, o sapo sente um fisgão nas suas costas. Primeiro, sente um calafrio, depois uma queimação, e diz:

            - Escorpião, por que você me picou? Não vê que agora ambos vamos morrer?

            - Sinto muito Saposapo! Não consegui evitar..... essa é a minha natureza!

 

Escrevo este artigo num momento bastante particular da história política brasileira que nos convoca a radicalizar ainda mais o pensamento e a prática política (o contexto é de graves denúncias de corrupção no Partido dos Trabalhadores e no Governo Federal de Lula). Talvez por isso algumas de minhas interpretações estejam tão carregadas. Mas enfim, acho que no fundo o problema é o esgotamento da política tal qual a conhecemos.

 

Assim como no dilema do sapo e do escorpião, precisamos reinventar a política (e toda a incerteza que a constitui) sem o que estamos condenados aos essencialismos mais bárbaros (do escorpião ou do sapo). Se as formas já enfraquecidas de fazer política tornaram-se meras forças gestionárias e de controle da vida, permeadas por diferentes mecanismos privatistas (também presentes no campo da sociedade civil organizada, na esfera cultural, sindicatos, partidos políticos, empresarial, etc.), onde prevalece a lógica de tirar a minha casquinha antes que acabe, só nos resta inventar e/ou reconhecer outras formas de fazer política. Confesso que sem o ato fundador da Política tenho dificuldade em imaginar uma ecologia que não seja entrópica neste planeta.

 

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[1]Neste artigo desenvolvo algumas impressões a partir da minha experiência de trabalho no Programa Oportunidade Solidária. Os argumentos e reflexões aqui presentes são devedores das discussões que nutri com colegas de trabalho, sobretudo Angela Schwengber e Sandra Fae Praxedes. Espero que o texto motive outras discussões e que possa ampliar a diversidade de opiniões sobre o tema, gerando um conhecimento mais complexo. Não irei dedicar muito tempo a uma descrição detalhada da implementação do Programa, nem tampouco dos seus resultados e aspectos mais positivos.   Sobre isso indicarei uma bibliografia específica no decorrer do texto. A idéia aqui é olhar para as dificuldades e problemas e provocar reflexões.

[2]Para conhecer o processo de elaboração e implementação dos Programas Sociais da SDTS/PMSP em detalhes veja: Pochmann, Marcio Márcio (org.) Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade: novos caminhos para a inclusão social, Ed. Cortez e Ed. Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2002.

[3]Para ter acesso aos resultados finais dos Programas, bem como às pesquisas externas de avaliação da Estratégia Paulistana de Inclusão Social veja: Pochmann, Marcio (org.) Políticas de Inclusão Social: resultados e avaliação, Ed. Cortez, São Paulo, 2004.

[4]Para conhecer a implementação e as transformações sofridas pelo Programa veja: Schwangber, Angela M. & Praxedes, Sandra & Parra, Henrique . Programa Oportunidade Solidária, in: Pochmann, Marcio Márcio (org.) Outra Cidade é Possível, Ed. Cortez, São Paulo, 2003.

[5]Os resultados finais e uma avaliação geral do Programa foram recentemente publicados na França. O livro será lançado em breve no Brasil: SCHWANGBER, AngelaÂngela M. & PRAXEDES, Sandra & PARRA, Henrique . Le Programme Opportunité Solidaire: la Construction construction d'une pPolitique Publique publique d'Économie d'économie Solidairesolidaire in Laville, Jean-Louis et alli (org.) Action Publique publique et Economie economie Solidairesolidaire, Une Perspective perspective Internationaleinternationale, Éditions Érés, 2005.

[6]A este respeito veja: ROY, William G. Socializing Capital: the rise of the large industrial corporation in America. New Jersey: Princeton Univ. Press, 1997.

[7]PIORE, Michael; SABEL, Charles. The second industrial divide: possibilities for prosperity. New York: Basic Books, 1984, p.38.

[8]LOJKINE, Jean. O Tabu da gestão: a cultura sindical entre contestação e proposição. São Paulo: DP&A, 1999, p.228.

[9]RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Ed. 34, 1996.