AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO - A ASCEMAR EM ESTUDO

Área Temática: Trabalho na Sociedade Contemporânea

Eliza Emília Rezende Bernardo Rocha - Departamento de Administração – Universidade Estadual de Maringá - eerbernardo@uem.br

Jéferson Soares Damascena - DAD –UEM - jefersonsd@yahoo.com.br

 

 

Resumo

A globalização, as novas tecnologias e a velocidade das transformações no mercado de trabalho fazem com que o indivíduo tenha que aprender (ou pelo menos tentar) a lidar com situações totalmente novas e que são de fundamental importância para a realização dos seus sonhos para o futuro como ser humano e como trabalhador que constrói a si mesmo e toda sua realidade. Os resultados destas transformações trazidas pela globalização têm caráter ainda mais devastador para os trabalhadores com menor grau de escolaridade e instrução ou que estão à margem do mercado formal de trabalho. O que se procura neste trabalho é investigar as transformações ou adaptações que o trabalhador/ associado da ASCEMAR vivencia e enfrenta em um mundo do trabalho que se modifica e  o obriga a aprender ou adquirir novas habilidades como forma de garantir sua sobrevivência. Quais os impactos e efeitos que estas adaptações imprimem no seu caráter, na sua personalidade? Qual o custo destas atitudes no campo subjetivo da construção e/ou desconstrução de seus valores e suas expectativas? Para isso, utilizou-se, nos procedimentos metodológicos, a técnica da entrevista semi-estruturada, entrevistando todos os associados da Ascemar.

 

Palavras-chave: trabalho; economia solidária; transformações.

 

I- Introdução

A rapidez das transformações trazidas pela globalização e o desenvolvimento de novas tecnologias, afetam diretamente as relações não apenas econômicas, mas principalmente as relações sociais, em especial no campo do trabalho e do emprego dito “formal”. Os resultados destas transformações são ainda mais profundos e têm caráter mais devastador para os trabalhadores com menor grau de escolaridade e instrução ou que estão à margem do mercado formal de trabalho. Estes trabalhadores são também excluídos por não terem o preparo necessário para atender às sempre mutáveis demandas do demiurgo mercado de trabalho, cada vez mais exigente e restrito. De acordo com Martini (1999, p.55), “não se pode admitir como absoluto o princípio de que o trabalho enobrece o homem. Na verdade o que enobrece o homem são os seus conhecimentos, seja qual for sua atividade laboral”.

Muito se fala hoje nas melhorias nos processos de produção e gerenciamento, em avanços como os da nanotecnologia e da biotecnologia. Avanços que visam sempre maior produtividade para o modo de produção capitalista, e que estão assentados em uma extensa campanha de construção de um senso comum, cujo fim é convencer que estes fatos se traduzirão em desenvolvimento para toda a humanidade (ou pelo menos para aqueles que poderão pagar por isso). Resultado disto é uma verdadeira mitificação da necessidade e inexorabilidade das seqüelas nefastas deste processo, tal qual um dogma. Contrariá-lo chega a ser considerado quixotesco. Não obstante, pensadores como Polanyi (2000, p.55), defendem que “o ritmo das mudanças muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança, mas enquanto esta última frequentemente não depende da nossa vontade, é justamente o ritmo no qual permitimos que a mudança ocorra que pode depender de nós”.

Assim, se continuarmos a acreditar que o progresso econômico não pode e não deve ser questionado ou alterado, conforme o contexto, então não existe espaço algum para que a realidade deste trabalhador, que sofre na pele, na sua vida, possa enfim ser melhorada.

 Polanyi (op cit, p56) refere-se aos efeitos do ritmo das transformações que a revolução industrial inglesa, principalmente no setor lanígero, causou no universo de vida do trabalhador: “... justamente desse ritmo dependia, principalmente, saber se os despojados poderiam ajustar-se às condições modificadas sem danificar fatalmente a sua substância humana e econômica, física e moral; se eles encontrariam novos empregos nas áreas de oportunidades indiretamente ligadas à mudança, e se os efeitos do incremento de importações, induzido pelo aumento das exportações, permitiria àqueles que perderam seus empregos com a mudança, encontrar novas fontes de subsistência”.

Hoje é possível constatar que algumas coisas, principalmente no universo da vida do trabalhador comum, não mudaram tanto assim.

A globalização, as novas tecnologias e a velocidade das transformações no mercado de trabalho fazem com que o indivíduo tenha que aprender (ou pelo menos tentar) a lidar com situações totalmente novas e que são de fundamental importância para a realização dos seus sonhos para o futuro como ser humano e como trabalhador que constrói a si mesmo e toda sua realidade. Há ainda a premência da rápida adaptação às novas exigências do trabalho, para o qual algumas vezes sequer tem tempo para se preparar. Isto acaba causando no trabalhador um sofrimento e uma sensação de angústia diante de um futuro que se vislumbra aterrador, traduzido por Martins (1999 p. 53/54): “...o indivíduo enfrenta fatos totalmente novos, como a  desqualificação de referenciais, a morte das utopias, dos sonhos, as novas exigências sociais como a meritocracia, a  exigência de competência  no trabalho, dos  quais não tem a menor idéia do que sejam, mas sofre suas conseqüências, a maior delas o desemprego , e  via de conseqüência, a fome, a miséria, a violência (...) pela ausência ou mudança de valores.”    

 

II- O problema de pesquisa

O trabalho, até a apresentação do capitalismo na sua forma mais extrema, o neo liberalismo  dos anos 80, era usualmente associado ao emprego assalariado,  tido como um direito do indivíduo, do cidadão. Esta realidade hoje mudou e muito. O emprego transformou-se exigiu mais conhecimento, mais formação mais comprometimento do tempo livre do trabalhador, enquanto, paradoxalmente, remunera cada vez menos. Nem por isso, o trabalho se faz menos necessário, ao contrário, trabalha-se cada vez mais. O que houve foi uma mudança nas formas de se trabalhar. O emprego, na forma como tradicionalmente era conhecido, vem sendo substituído por outras formas, como o trabalho em casa, o trabalho temporário, os grupos de atividade e outras.

Um trabalhador que tenha construído sua vida, sua história, sua família baseado no seu trabalho (ou na sua forma vigente desde a adoção do modo de produção capitalista, o emprego assalariado), estruturou todas as suas relações sociais e consigo mesmo, seus valores, seus planos para o seu futuro e da sua família, sua auto estima enfim, assentada no significado do seu trabalho. Ele é um cidadão, consumidor, tem uma importância econômica exigida por todo um sistema baseado na função econômica de toda a sociedade. O consumo é a mola mestra deste sistema que não pode parar, sob pena do caos que isto pode ocasionar.

Eventualmente, ao perder esta condição (de assalariado), sua vida sofre naturalmente um grande abalo. Ao perceber, então, que o seu retorno ao mercado de trabalho, dado a sua condição de não especializado, ou não preparado para as novas demandas de um mercado bastante modificado, é cada vez mais difícil, este indivíduo vê seu mundo ruir pouco a pouco à sua frente. Toda sua segurança e seus planos começam a submergir no terreno pantanoso do desânimo.

A perda de sua importância econômica e a impossibilidade de manter a si e a sua família se tornam um fardo insuportável. Neste momento, este cidadão começa a questionar sua própria capacidade e introjecta um sentimento de culpa, de incapacidade por um fracasso do qual na realidade ele é apenas mais uma vítima. Sua auto-estima, seu auto-conceito desmoronam.

Dessa forma, o que se procura neste trabalho é investigar as transformações ou adaptações que o trabalhador/ associado da ASCEMAR vivencia e enfrenta em um mundo do trabalho que se modifica e  o obriga a aprender ou adquirir novas habilidades como forma de garantir sua sobrevivência. Nesse sentido, pretende-se: - identificar os impactos e efeitos que estas adaptações imprimem no seu caráter, na sua personalidade; e, - compreender o custo destas atitudes no campo subjetivo da construção e/ou desconstrução de seus valores e suas expectativas. A intenção deste estudo de caso é abordar, através de vários depoimentos, como pessoas que passaram por situações semelhantes de desemprego e exigências das transformações dos novos tipos de trabalho e seus significados, acabaram encontrando como alternativa à sua sobrevivência o lixo. Tentar-se-á ainda, demonstrar como foi possível, através da união destes trabalhadores em uma associação de catadores, transformarem o que antes era uma questão de sobrevivência, em uma melhoria da sua condição econômica.

 

III- Revisão Bibliográfica

III.1- O novo trabalhador

No mundo sem emprego, surge então a necessidade de maior valorização do trabalho e do trabalhador. Mas que trabalho é  esse ? Que trabalhador é este? Que ser é este que, após ser educado boa parte de sua vida para obedecer as exigências de uma função na maioria das vezes autômata, sem qualquer significado para ele, sem as vezes sequer entender direito o que estava fazendo, agora se vê forçado a fazer qualquer coisa para garantir sua sobrevivência e a dos seus?

Segundo Senett (2001, p.10), “caráter são traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”. Destarte, num mundo sem emprego, onde o trabalho vale cada vez menos, (em termos de remuneração), mesmo para aqueles que conseguem o “privilégio” de manterem-se no mercado, pagam o seu preço, a angústia de não saber quem será o próximo a fazer parte da “redução de custos” da empresa. A incerteza do amanhã faz com que este trabalhador também sofra: “... o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades que ligam os seres humanos uns aos outros e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável”. (op cit,p.27).

Em Sarandi, como em muitas outras cidades do Brasil, a história destes trabalhadores, denominados catadores, via de regra é a mesma. Muitos acabaram por buscar seu sustento recolhendo materiais recicláveis no lixão do município. Outros optaram por atuar como “carrinheiros”, recolhendo nas ruas os materiais para serem posteriormente vendidos aos atravessadores.  Em comum, basicamente duas coisas:

 

·        Nenhum poder de barganha com atravessadores (devido às pequenas quantidades de material coletado, além da inexistência de uma separação adequada), que ditam os preços pagos aos catadores.

·        As péssimas condições de trabalho, aliada ao preconceito pela própria natureza do mesmo.

 

A diferença: uns são “visíveis”, insistindo em atrapalhar o trânsito e expondo as mazelas de uma realidade que muitos fingem desconhecer. Outros, mantidos à distância, nos lixões, não são vistos. È como se não existissem para esta mesma sociedade que, de certa forma, tem uma parcela de responsabilidade por esta situação.

 

III.2- O TRABALHO COLETIVO COMO ALTERNATIVA À CONSTRUÇÃO DE UM NOVO TRABALHADOR

Imagine um indivíduo que durante algum período considerável de tempo, teve sua vida social e familiar assentada no seu emprego. Os colegas, “a carteira assinada”, as tarefas que executava diariamente, o retorno à casa no fim da jornada diária de trabalho. Enfim, um trabalhador igual a milhões que diariamente lutam pelo seu sustento e da sua da sua família.

De repente, este trabalhador perde o emprego e, com ele, toda a sua referência. Sua vida se desestrutura. Como se manter? O que fazer? È o fantasma do desemprego que atormenta a vida de tantos indivíduos.

 O retorno ao mercado formal é outro pesadelo. Suas aptidões, seus conhecimentos e saberes talvez não sirvam mais. Como sobreviver?

Rodriguéz (apud Santos, 2002.p.332-333) , destaca que o aumento da desigualdade e a efetiva exclusão de grandes parcelas da população mundial do processo de apropriação e expansão do capital (ou seja, os desempregados, trabalhadores com baixa qualificação ou que não atendam as exigências atuais do mercado formal de trabalho , ou ainda os que atuem nos mercados  informais de sobrevivência ), sugere que  o capitalismo  pode perfeitamente continuar existindo sem estas pessoas. Elas passariam passam a não ter mais importância no processo de acumulação do capital. Tornam-se redundantes: “...redundantes como produtores, na medida em que desempenham atividades de baixa produtividade e reduzido valor agregado; redundantes como consumidores, na medida em que seu poder aquisitivo é tão sumamente reduzido que (...) sua participação na sociedade de consumo consiste fundamentalmente em sair a rua para ver vitrines.”

 Durante algum tempo, disseminou-se a idéia de que a função da educação era a de “preparar” o trabalhador para atender as demandas de um mercado de trabalho que sofria grandes transformações devido aos novos arranjos produtivos, incremento de tecnologia e modelos de gestão que exigiam um trabalhador mais treinado, mais habilitado para atuar com computadores, sistemas de informações e outras inovações que se instalaram de forma definitiva.

Segundo Batista (in Batista e Araújo, p.148)“... a  autonomia do trabalhador neste processo (de modernização, resultante da reestruturação produtiva), é extremamente relativa, pois a sua participação e engajamento são estimulados apenas em torno dos interesses da empresa”

Neste processo via de regra acaba gerando um sentimento de frustração, na medida em as exigências de escolaridade e qualificação formação. Este processo ocasiona  uma frustração do trabalhador, pois à medida que se exige dele maior escolaridade, maior qualificação, surge a a expectativa de satisfação no trabalho. “Entretanto, o que se observa é o pânico em torno do desemprego, da possibilidade concreta da demissão a qualquer momento, do salário baixo, etc. Há ainda a angústia diante das disputas que os trabalhadores travam entre si para manterem-se no emprego e para serem promovidos na empresa, já que a solidariedade anda em baixa, o que vale é a exacerbação do individualismo”(ibidem, p.148).

Além disto, este “novo ser” deveria estar atento às coisas do mundo, estar informado, ter novas competências que, em alguns casos, jamais ousou sequer suspeitar que fossem necessárias para o seu dia a dia do trabalho. O avanço tecnológico é inexorável, mas a que custo para o novo trabalhador? Como se adaptar tão rapidamente as novas exigências?

XICO LARA (2003) retrata muito bem a questão do novo trabalhador e a questão do novo modismo que assola o mercado de trabalho, ou seja, o empreendedorismo :“a idéia segundo a qual o operário industrial seria reciclado e aproveitaria novas oportunidades era tolice. Ele virou pipoqueiro.” (in Lara, 2003, p.7).

Isto tudo acaba refletindo no comportamento do trabalhador, que se vê como culpado pelo próprio infortúnio. Porque não se aprimorou? Não buscou novos conhecimentos?  Não previu as novas demandas do mercado de trabalho?

Esta introjeção de culpa acaba por prejudicar sua vida social, deteriorando sua relação com a própria família. Seus filhos, vizinhos, sua comunidade, seus (ex) colegas de emprego, enfim toda sua vida, antes estruturada no seu emprego, desmorona à sua frente. Como sustentar a si e seus dependentes?  De uma hora para outra, este indivíduo deixa de ser funcionário e, pior dos pecados na sociedade do simbolismo: deixa de ser consumidor.   

Neste contexto, de um mercado de trabalho extremamente exigente e excludente, e que ao mesmo tempo remunera cada vez pior, a sobrevivência torna-se uma verdadeira luta contra o tempo. O trabalhador fica preso a uma espécie de tautologismo : não retorna ao mercado formal de trabalho porque não se “reciclou”, e não consegue se reciclar  porque não tem como custear este processo, haja visto não ter tempo, quando empregado, ou não ter mais renda , quando desempregado.

Neste sentido, a organização dos catadores, muitos jogados na atividade pelo desemprego, mostra-se  uma alternativa viável de re-inserção  destes trabalhadores tanto no mercado de trabalho, como no de consumo. Partindo disto, estes indivíduos podem protagonizar sua significância social e econômica, dando um novo significado as  relações consigo mesmo, com a família e com toda a sociedade.

 

IV- HISTÓRICO DA ASCEMAR

A  ASCEMAR  (Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Sarandi) foi formada a partir da necessidade por parte dos catadores de materiais recicláveis da área do lixão de Sarandi, em procurar não apenas assegurar uma vida  digna.

O lixão de Sarandi, está localizado a 8 Km do centro da cidade e até a entrada  do Ministério Público determinando o fechamento das áreas  dos lixões a  partir de setembro de 2001 para a implantação de  aterros sanitários, vários trabalhadores viviam da catação de materiais para serem vendidos aos atravessadores “aparistas”que compram estes materiais a preços baixíssimos  e os revendem com uma boa margem de lucro às indústrias de reciclagem.

Estes trabalhadores da área do lixão atuavam sob condições desumanas de trabalho e expostos à grande proliferação de doenças advindas do lixo orgânico despejado no local.

Segundo Márcia Maria da Silva Sodré, uma dos fundadores e primeira presidente da associação, a idéia para que os catadores da área do lixão se organizassem em associação ou cooperativa partiu da Prefeitura Municipal de Sarandi em setembro de 2001. Em princípio existiu certa desconfiança por parte do grupo: “o povo (os catadores ) nem sabia o que era isso, e não tinham vontade de sair do local”. Naturalmente, o que estes catadores defendiam, apesar das condições adversas do seu trabalho, era o meio manter sua sobrevivência. Além disto, pouco ou nada sabiam do que é trabalhar organizado, em grupo, em uma associação, justamente numa atividade caracterizada pela competição e pela individualidade.

A partir do começo do ano de 2002, a Prefeitura de Sarandi através da atuação de alguns técnicos, efetua um trabalho de conscientizar estes catadores da área do lixão, realizando reuniões e palestras, visando incentiva-los a se organizem em forma de associação. Um dos tantos obstáculos à realização deste intento era a falta de recursos do grupo, uma vez que apesar de todo o apoio do público, os trabalhadores deveriam arcar com alguns custos necessários para o funcionamento da futura associação, como o aluguel do barracão, água, energia elétrica, e outros gastos comuns a qualquer empreendimento.

A organização do grupo em forma de cooperativa naquele momento se mostrava inviável, principalmente devido ao caráter incipiente do processo e às muitas exigências da legislação vigente. Além disto, a falta de recursos impossibilitaria concretizar tal alternativa. Assim, eles decidiram que a formalização do grupo seria em forma de associação. Inicia-se então o processo de discussão de um Estatuto.

O grupo reúne-se para gerar a “ata de Fundação” da associação, realizando eleição para Presidente, Vice-Presidente, Secretário, 2º Secretário, Tesoureiro e dois Conselheiros Fiscais e aprovando o Estatuto da associação. Assim criava-se, no dia oito de maio de 2003, a ASCEMAR - Associação dos Catadores e Materiais Recicláveis de Sarandi.

Já instituída e legalizada, a ASCEMAR ainda prescindia de recursos para sua instalação física além da criação de um programa de coleta seletiva. A prefeitura e câmara de vereadores, através da aprovação da lei  nº 1068/2003 , que institui o Programa Municipal de Apoio aos Catadores de Materiais Recicláveis, publicada em 29/09/2003 deram um passo fundamental  em direção à concretização da organização coletiva destes trabalhadores. Esta lei permitia ao poder público conceder assistência técnica e alimentar, bem como a busca de parcerias para a aquisição da infra-estrutura para a formação de cooperativas ou associações de trabalhadores que atuassem na comercialização e beneficiamento de materiais recicláveis.

Assim, no dia nove de dezembro do corrente ano, os trabalhadores catadores, que aderiram ASCEMAR instalam-se para um barracão cedido pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, através do Convênio nº 024/2003 que previa ainda o pagamento de energia elétrica, concessão do caminhão e motorista para a coleta seletiva, além da promoção da capacitação profissional dos associados da ASCEMAR. Instala-se então o programa de coleta seletiva em Sarandi, desenvolvido através de uma parceria entre a prefeitura e a ASCEMAR, a  Caixa Econômica Federal (que proporcionou a aquisição dos carrinhos para a coleta) e alguns empresários de Sarandi e região. A coleta seletiva em Sarandi partiu da divisão do município em seis setores. Os associados da ASCEMAR num processo de conscientização da população para a relevância da coleta seletiva iniciam um contato direto com a comunidade, abordando as residências e entregando o material básico explicativo com um saco plástico de 100 litros, recolhido com o material reciclável, no mesmo dia da semana posterior.

Hoje a ASCEMAR conta com 23 associados, organizados em duas turmas: seleciona e classifica o material reciclável recolhido, e a outra vai às ruas para coletar o material nas residências. O sistema é rotativo e todos fazem o trabalho interno e externo.

Ao se organizarem em grupos, estes trabalhadores começam a perceber que sua realidade pode mudar. Estes catadores, que antes eram vistos como incômodos, começam a ter uma importância da qual jamais suspeitaram. É bem verdade que foi graças à atuação do ministério público no sentido de combater os lixões, que a sociedade e o Estado resolveram atuar de forma mais efetiva para reverter esta situação vergonhosa.

 

V- Discussão e Análise

A organização do catador em associação ou cooperativa, possibilita a este trabalhador uma nova perspectiva não apenas de sobrevivência, mas de valorização da sua atividade, que tem como característica o trabalho individualista.No caso da ASCEMAR, uma boa parte dos entrevistados (através da técnica de investigação de entrevista semi-estruturada) não era catador em tempo integral. Foram empurrados para a atividade em virtude do desemprego e a necessidade de obter e/ou complementar a renda da família. As respostas obtidas a partir da primeira pergunta, (o que você fazia antes de trabalhar com materiais recicláveis?) variam pouco e têm o mesmo perfil de exclusão do mercado formal e trabalho em “bicos”:“Eu trabalhava como pedreiro, servente e carpinteiro. Quando eu morava no sítio eu fazia casa. Depois eu vim            pra cidade pra trabalhar de pedreiro”.(relato de entrevista).

Eu já trabalhava na escola, de serviços gerais como merendeira numa escola indígiena em Urtigueira, por seis anos”.Depois vim pra Sarandi e fiquei sem serviço, aí fui trabalhar no lixão, fiquei lá por uns seis meses ”(relato de entrevista).

Entre a necessidade de manter a si e a sua família e a falta de opções de emprego mo mercado formal, estes trabalhadores vão buscar na atividade de catação de materiais recicláveis, uma forma de poderem pelo menos garantir sua sobrevivência e a dos seus:

Eu tava desempregado e quando trabalhava de servente não era direto... às vezes a gente ficava parado, sem serviço. Ai eu catava na um pouco na rua com meu filho. Ai eu soube que a Ascemar tava precisando de gente e fui falar com a Márcia, que era a presidente. Fiz uma experiência de 15 dias e aí eles gostaram... passei na experiência, né , e tô até hoje, já faz perto de um ano”. (relato de entrevista).

Fiquei sem serviço. Nunca tinha catado na rua. Aí apareceu a chance de entrar na Ascemar. Comecei a trabalhar com isso na associação. (relato de entrevista).

 A decisão de se organizar em grupo não é uma tarefa fácil, principalmente para vem sofrendo vários tipos de exclusão na pele.Para quem já trabalha na atividade de catação, a noção de grupo, de solidariedade é uma a novidade, em uma atividade marcada pelo individualismo e pelo trabalho solitário e discriminado.

 Rodriguéz constatou na RESCATAR, uma cooperativa de catadores fundada em 1987, na cidade de Bogotá, Colômbia, que “em síntese, as regalias sociais da cooperativa são parte essencial do seu funcionamento e do seu atrativo para os recicladores. De fato, em alguns casos é até a única razão pela qual os recicladores permanecem nela (...) vender à cooperativa o material recolhido pode ser desvantajoso de um ponto de vista estritamente econômico, já que implica a perda de opção de venda ao intermediário que pagar o melhor preço e receber deste, adiantamentos e empréstimos”(Rodriguéz, in Santos 2002.p.355).

Entretanto a desconfiança e a sensação de perda da liberdade de vender ao atravessador vai sendo substituída gradativamente pela verificação de que a venda em conjunto pode lhe render preços mais vantajosos, já que existe uma espécie de inversão da cadeia. Antes, o catador dependia do atravessador que determinava o preço, agora, na associação, são eles que decidem para quem, como e por quanto vender, devido ao maior volume de material coletado. Some-se a isto o fato de através do contato com outras cooperativas, do trabalho em conjunto com a UEM (via Núcleo Local da Unitrabalho), prefeitura de Sarandi e outros parceiros, estes trabalhadores vêm aprendendo a gerir seu negócio, bem como a separar e classificar os materiais coletados de uma forma mais detalhada, obtendo ganhos de produtividade e preços maiores na hora da venda. Quando lembramos que estes mesmos trabalhadores, há pouco tempo atrás sequer sabiam o que era uma associação ou cooperativa, não há como negar os resultados positivos deste processo de emancipação do trabalhador reciclador, agora a caminho da profissionalização da sua atividade. Isto reflete-se nas palavras dos próprios associados:

Antigamente as pessoa chamava a gente de mendigo. Aqui agora a gente ta sendo mais respeitada por            causa da associação.Agora tem mais respeito, já trata nóis como serviço digno.Quem cata sozinho ainda é mal tratado. Quando a gente sai com o carrinho da associação, o povo respeita mais a gente (relato de entrevista)

“Pra mim mudou bastante, porque a gente já cata e leva pro caminhão ( da coleta seletiva), a gente tem horário pra ir pra casa... o respeito pelo trabalho é muito bom. A gente tem mais união, conhece mais as pessoas na rua que a gente busca o material.Eu tenho toas as “coisinha” em casa No lixão a o que ele (catador) tira é só dele . Na associação é diferente, todo mundo junto é mais é mais fácil de conseguir as coisa...Todo mundo dando apoio a gente vai pra frente . Na associação a gente ensina os outros, só precisa ter união.” (relato de entrevista)

 Existem ainda outros aspectos subjetivos, last but no least, que não podem e não devem deixar de serem ressaltados: “... a transição do trabalhador de uma relação de operário /patrão para uma igualdade entre cooperados é difícil. (...) Este processo é especialmente difícil quando os atores são pessoas que sofreram formas extremas de exclusão social, como os recicladores de lixo. (...) um fator essencial para a continuação das cooperativas em meio às dificuldades de todo o tipo é que elas constituem pequenas comunidades de apoio mútuo entre os recicladores participantes. Nessas cooperativas, as atividades lúdicas, culturais, sociais e outras promovidas pelas cooperativas são tão importantes –do ponto de vista dos participantes-quanto o trabalho quotidiano de reciclagem e, de fato, com freqüência, são as razões centrais pelas quais os recicladores permanecem nas cooperativas”. (SANTOS, 2002.p.65).    

Assim verifica-se que noção de segurança e autonomia experimentada pelos associado, aliada as conquistas e parcerias que o grupo vai amealhando, vão aos poucos formando um tecido coeso de pessoas que começam uma integração. Integração que, em princípio, assenta-se no econômico, mas que pouco a pouco vai estendendo-se para a vida pessoal, adquirindo características subjetivas, fazendo com que a associação lhes de um novo significado, tanto ao seu trabalho como à sua condição de seres humanos em busca de uma vida mais digna :

Pra mim melhorou, tem serviço fixo, tô trabalhando mais animado. Quando eu trabalhava de pedreiro, ganhava pouco... Ah, hoje eu vou de domingo no campo de bocha, sabe, e “eles” falam: olha o homem da reciclagem! “Eles” já conhece a gente por causa da rua, dos carrinho.Eu agora falei pra “eles” que eu sou vice sabe... a pessoa tem que ser honesta, mostrar raça né? Agora depois da Ascemar, as pessoa trata a gente melhor.” (relato de entrevista).

“Minha vida mudou bastante, sou muito conhecida... as pessoas gostam da gente ,aí elas falam : vocês são da associação né, peraí que eu vou buscar o lixo... A minha filha antes ficava com vergonha de eu ser  do lixão, e no começo da associação , mas hoje a gente já é conhecido , e ela não tem mais não...Hoje eu me sinto mais realizada, no lixão ninguém tem nada com ninguém, é cada um por si. Agora a população já conhece nós, já chama a gente, é bem legal.A gente fica mais orgulhosa...” (relato de entrevista).

 

VI- Conclusão

A totalidade dos entrevistados relatou sua satisfação em pertencer à associação. Embora os ganhos de renda não sejam os esperados, por outro lado o ganho de auto estima, das suas novas relações e interações sociais, além da percepção de uma maior significação do seu trabalho, são facilmente observados, e sugerem que o fato de pertencerem a uma associação seja o fator que mais pesa na sua permanência na ASCEMAR.

A condição de obtenção do respeito pela população, pela sua própria comunidade e da sua família, mesmo atuando em uma atividade ainda bastante discriminada, sugere uma análise mais aprofundada das transformações no mundo do trabalho e do trabalhador da reciclagem. As exigências do próprio mercado geraram uma valorização dos saberes destes trabalhadores “especialistas’ em separação e classificação de materiais destinados a indústria de reciclagem. Além disto existe a necessidade de ampliação das relações interpessoais e sociais destes. Hoje já é uma realidade : estes trabalhadores têm de buscar aumentar seus saberes relativos á atividade de separação, bem como ampliar seus conhecimentos sobre outras áreas antes estranhas, como comercialização, gestão, logística e outras atividades  inerentes a qualquer outro empreendimento econômico. Assim, o que antes era sobrevivência e hoje é mais qualificação, e o que era informal, já é r tratado como um setor de importante significado econômico e social. Mais uma vez vaia o trabalho não apenas trilhando, mas construindo  a sua própria trilha na história do homem e a sua relação com o trabalho.

                       

Referências :

 

BATISTA, R.L. e Araújo, R. (orgs). Desafios do Trabalho – Capital e Luta de Classes no Século XXI. Maringá: Massoni, 2003

FORRESTER, V. O Horror Econômico.  São Paulo: Unesp, 1997, 7° ed.

KRAYCHETE, G. – (orgs.) Economia dos Setores Populares: Entre a Realidade e a Utopia- Petrópolis: Vozes, Rio de Janeiro, 2000

KURTZ, R. O Fim da Era da Diversão. Folha SP - Caderno Mais! -7/11/2003, p.12.

LARA, X. Trabalho Educação e Cidadania. Rio de Janeiro: Mauad, 2003

LISBOA, A.M. Desordem do Trabalho, Economia Popular e Exclusão Social. Algumas Considerações. www.ecosol.org.br

MARX, K . O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988 Vol.I

MARTINI, E.M. Escola e Trabalho: Uma Proposta de Reflexão. Sociais e Humanas/UFSM -  Centro de Ciências Sociais e Humanas, Vol.12, Santa Maria, 1999.

POLANY, K. A Grande Transformação: As Origens da Nossa Época.Rio de Janeiro: Campus, 2000.2º ed.

PROJETO DO LIXO À CIDADANIA-Prefeitura Municipal de Sarandi-PR , 2003

SANTOS, B.S.S. -(org) Produzir para Viver: Os Caminhos da Produção não Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SENNET, R. A Corrosão do Caráter: Conseqüências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2001, 5º edição.

SINGER, P. Introdução a Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003, 1º ed.

SINGER, P. e Souza, A. R. (orgs) A Economia Solidária no Brasil: A Auto Gestão como Resposta ao Desemprego. São Paulo: Contexto, 2000.