ECONOMIA SOLIDÁRIA E ANÁLISE ORGANIZACIONAL: DIALOGANDO COM GUERREIRO RAMOS

 

ÁREA TEMÁTICA: PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

 

Gildásio Santana Júnior - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/ Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia - gildasiojr@uol.com.br

 

Resumo

Este artigo tem o objetivo de relacionar análise organizacional e economia solidária. Para isso, coteja-se, especificamente, a análise de Guerreiro Ramos sobre a teoria das organizações com o fenômeno da economia solidária. A problemática que anima a discussão é como a análise organizacional pode compreender o fenômeno da economia solidária? Mais precisamente, procura-se investigar em que medida o arcabouço teórico analítico desenvolvido por Guerreiro Ramos constitui-se como um instrumental pertinente para reflexão da economia solidária. Os procedimentos metodológicos adotados passam por uma análise crítica-comparativa de uma formulação teórica (a obra de Guerreiro Ramos) com os contornos de um objeto empírico (fenômeno da economia solidária). Lança-se mão de citação e de quadro explicativo. Conclui-se que o modelo multidimensional e a discussão da racionalidade propostos por Guerreiro Ramos possibilitam uma base teórica para refletir sobre economia solidária. Assim, pode-se afirmar que Guerreiro Ramos apresenta importantes contribuições no sentido de formatação de um quadro interpretativo para o fenômeno da Economia Solidária.

 

PALAVRAS CHAVES: ECONOMIA SOLIDÁRIA, GUERREIRO RAMOS, ANÁLISE ORGANIZACIONAL


1. Introdução

Se no limiar do século XX a ciência era tida como a forma racional de conceber e o único meio legítimo para produção de conhecimento, no início do séc. XXI tais certezas não existem mais. Talvez por isso, observamos a ciência mergulhada numa crise sem precedentes, crise essa que representa queda de certezas, de paradigmas e de referências.

A Teoria das Organizações não saiu ilesa deste processo. Se iniciávamos o século anterior com as certezas de Taylor e da administração científica, hoje o campo dividiu-se e busca, das mais variadas formas, encontrar análises convincentes. Ao longo do século XX a teoria organizacional ampliou seu poder de análise, porém não conseguiu ficar isenta da crise.

Diante de tal trajetória e com a emergência de novos fenômenos como a análise organizacional pode explicá-los? Qual o tratamento que deve ser dispensado para tais acontecimentos? Que caminhos trilhar? São questões que pululam na escrivaninha até dos mais convictos dos cientistas da área organizacional. Neste sentido, como a análise organizacional pode compreender o fenômeno da Economia Solidária?

Dessa forma, este artigo tem o objetivo de relacionar a perspectiva de Guerreiro Ramos[1] na análise organizacional com o fenômeno da economia solidária. A partir, portanto, da análise desse autor (tal como ele desenvolvera no livro A Nova Ciência das Organizações, em 1989), busca-se situar a economia solidária numa problemática de teoria organizacional. Em termos da estrutura, apresentamos inicialmente o tema da Economia Solidária, que é abordado especialmente em relação ao seu sentido e gênese que situam suas experiências. Em seguida, apresentamos o próprio campo dos estudos organizacionais, a fim de contextualizar minimamente a perspectiva de Guerreiro Ramos. Posteriormente apresentamos algumas interpretações desse autor visando evidenciar algumas singularidades da sua reflexão. A idéia é de estabelecer, na seqüência, uma correspondência com o tema da economia solidária.

2. Economia Solidária

A temática da economia solidária tem adquirido bastante visibilidade no período recente com uma intensidade cada vez maior. Seja no ambiente acadêmico, donde várias áreas do conhecimento elegem a economia solidária como objeto de reflexão; seja no âmbito governamental com a criação de pastas e setores referentes (No Brasil foi criada a Secretária Nacional de Economia Solidária [SENAES] do governo federal e outras congêneres nas esferas estadual e municipal). Tal visibilidade é ocasionada pela ampliação dos números de experiências produtivas que se reivindicam solidárias, pela organização e atuação dessas em fóruns e redes. Só no Brasil, levantamentos preliminares da SENAES indicam a ocorrência de mais de 20.000 organizações econômicas solidárias.

Os participantes do “movimento” por uma economia solidária criticam a estrutura social capitalista e aponta uma série de propostas visando o bem viver para todos, de forma colaborativa/integrada e desenvolve arranjos sócio-produtivos distintos das empresas capitalistas. Eles defendem uma outra lógica de mundo, onde a competição dê lugar ao relacionamento fraterno, as agressões ao meio ambiente sejam substituídas por uma convivência harmoniosa com a natureza, a atividade laboral das pessoas deixe de ser alienante e desinteressante e passe a ser criativa e fonte de realização.

As organizações de economia solidária propõem de um lado resolver o problema da sobrevivência mais imediata através de alternativas econômicas, e, por outro lado, construir nessas alternativas novas formas de participação e decisão política que vão de encontro ao modelo capitalista e em busca de um novo patamar de desenvolvimento social. Aliás, essas práticas questionam em seus objetivos o próprio modelo de desenvolvimento capitalista, propondo uma nova forma de desenvolvimento sócio-econômico.

2.1. A Gênese da Economia Solidária

A visibilidade que o movimento conseguiu no Brasil é fruto de uma intensa agitação que começa no final dos anos oitenta com a reflexão sobre os programas de geração de trabalho e renda até chegar à constituição do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), em 2003.

Todavia a origem da economia solidária, pelo menos na Europa e América Latina, remonta desde os primórdios do capitalismo; dessa forma, podemos relacionar a economia solidária a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, no caso da Europa (Singer, 2002; França Filho e Laville, 2004) e ao processo de colonização, em se tratando de América Latina (Moreno, 2001; Guerra 2004).

Segundo Pablo Guerra (2004) o termo, os fundamentos teóricos e o sentido específico da economia solidária foram criados na América Latina, através dos trabalhos de Luis Razeto[2], em princípios dos anos 1980; Guerra chega a afirmar que existem duas matrizes analíticas da economia solidária: uma latino-americana e outra européia. 

Com efeito, a partir das heranças do modo de vida de indígenas e africanos, percebe-se que um padrão de vida comunitário, baseado na reciprocidade perpassou a região latino-americana. Esses costumes e tradições permaneceram ao longo de gerações como, por exemplo, as práticas sociais de mutirão, da colheita conjunta etc.. A partir dos processos de independência política e abolição da escravatura nos países da América Latina, os indígenas e os ex-escravos ficaram sem os meios de produção para garantir o seu sustento. Como os pólos mercantil e estatal da economia não garantiram absorção dessa parcela de trabalhadores, eles tiveram de engrossar e desenvolver práticas econômicas alternativas para garantir a sobrevivência, ensejando uma espécie de economia dos setores populares.

Assim, se na Europa a gênese de atividades econômicas com solidariedade esteve relacionada com as reminiscências do trabalho associado/comunitário e a luta dos artífices em se contraporem a forma e a organização fabril capitalista, alimentada pelos ideais da revolução francesa (E. P. Thompson, 1987); na América Latina o começo de uma economia com solidariedade foi gestado a partir das estratégias de sobrevivência dos indígenas, dos negros e de parcelas dos imigrantes que estavam marginalizados na lógica produtiva aplicada na região.

Gaiger (2004) adverte que,

 várias condições necessitam ser atendidas, concorrendo para isso diferentes elementos, cuja presença e cuja força muitas vezes dependem de condições criadas ao longo do tempo, à revelia das intenções ou graças a iniciativas conscientes e gradativamente amadurecidas pelos sujeitos que protagonizam o novo solidarismo econômico. Tais experiências, imersas em histórias individuais e coletivas, não obedecem a leis de geração espontânea, não germinam artificialmente e apenas em casos especiais podem ter o seu nascimento abreviado. A formação de sujeitos populares ativos e organizados – misto de necessidades e de vontades – conhece poucos atalhos e muitos desvios.

Assim, aponta os seguintes elementos como condicionantes do surgimento das organizações econômicas solidárias;

i)                    a presença de setores populares com experiência em práticas associativas, comunitárias ou de classe (...) nas quais forjaram uma identidade comum, criaram laços de confiança e desenvolveram competências para sua organização e para a defesa de seus interesses.

ii)                  a existência de organizações e lideranças populares genuínas, vincadas nos movimentos de ação direta e nos sistemas de representação dos interesses coletivos próprios àqueles segmentos sociais.

iii)                Chances favoráveis para que práticas econômicas associativas sejam compatíveis com a economia popular dos trabalhadores, amoldando-se nos arranjos individuais, familiares e semicoletivos que lhes asseguram a subsistência e que estão inscritos em sua experiência e nos seus círculos de relação e de influência.

iv)                A presença de entidades e grupos de mediação, aptos a canalizar as demandas dos trabalhadores para alternativas associativas e autogestionárias.

v)                  A incidência concreta, sobre trabalhadores em questão, dos efeitos da redução das modalidades convencionais de subsistência, seja devido à menor absorção ou maior seletividade do mercado de trabalho, seja devido à ineficácia das políticas públicas destinadas a gerar oportunidades econômicas ou compensar momentaneamente a sua insuficiência.

vi)                A formação de um cenário político ideológico que reconheça a relevância dessas demandas sociais e das alternativas que apontam, as quais passam a penetrar em amplas frações dos movimentos sociais e na institucionalidade política.

 

Logo, de uma forma geral, podemos indicar três vertentes para a retomada da economia solidária na atualidade: crise do emprego assalariado, a limitação de ação do Estado nas áreas de bem estar, a associação da iniciativa econômica com atitudes solidárias e a elaboração duma alternativa econômica e social ao capitalismo e ao socialismo burocratizado, representado pela experiência do Leste europeu.

2.2. As práticas que compõem a Economia Solidária

As práticas que animam a economia solidária, de uma maneira geral e tipológica, podem ser enumeradas como comércio justo, finanças solidárias, economia sem dinheiro, empresas sociais, arranjos produtivos solidários e entidades de apoio e fomento das práticas solidárias. Elas surgem a partir das ações de combate a pobreza, programas de manutenção e ampliação de postos de trabalho, lutas pela preservação ambiental, ações democratizantes de utilização do fundo público, projetos de desenvolvimento (sobretudo local) e novas formas de integração entre regiões (Sul/Norte).

Cabe destacar que a economia solidária enfatiza as relações culturais, a possibilidade de ganho, mas não a lógica da maximização dos mesmos. E sugere um olhar para tais empreendimentos a partir de pilares que não sejam exclusivamente a partir da lógica gerencialista de eficiência. Ressalta-se, também, que para ser considerado uma organização de economia solidária não basta ter o título de cooperativa ou associação, pois sabemos que diversas associações, cooperativas e até ONGs, funcionam com práticas idênticas da organização capitalista, tais como: a heterogestão, falta de transparência, o assalariamento, utilização da competição e a busca incessante de lucros.

Logo a Economia Solidária tem sido analisada como um fenômeno distinto das organizações capitalistas e trazendo consigo diversas particularidades. França Filho e Laville (2004) compreendem a economia solidária como uma tentativa inédita de articulação entre a economia mercantil (mercado – trocas), não-mercantil (Estado – redistribuição) e não monetária (reciprocidade – dádivas), conformando uma economia plural que hibridiza princípios econômicos. Além disso, eles afirmam que a Economia solidária refere-se a experiências em que o emprego não representa um fim em si mesmo. Ele parece representar muito mais um meio para descoberta de sentido de elaboração em comum de projetos econômicos” (p. 187, 2004).

Gaiger (2004), por sua vez, considera que as práticas de Economia Solidária representam experiência de emancipação do trabalho desumanizado, o que implica a restituição do trabalhador à condição de sujeito de sua existência. Assim, a partir de tais particularidades, pode-se afirmar que as práticas de Economia Solidária constituem-se como uma organização de formato diferenciado das organizações capitalistas.

A partir de tais particularidades, como o quadro analítico dos estudos organizacionais e particularmente o aporte teórico desenvolvido por Guerreiro Ramos interpreta o fenômeno da Economia Solidária?

3. Algumas visões do campo dos estudos organizacionais

Não é surpresa a constatação que organizações transformaram-se nos últimos anos, seja no seu formato e arquitetura, na sua composição e estruturação; bem como que a análise e a reflexão sobre elas se transformaram bem mais. Da concepção da organização como máquina, trabalhada pelos pioneiros da Administração Científica, chegamos a vê-la como prisões psíquicas, conforme salienta Morgan (1996).

A explicação para tal fato decorre do próprio conceito de organizações e da relação que os pesquisadores travam com o objeto em si. Admitindo que organizações são objetos empíricos, como conceitua Clegg e Hardy (1998), significa dizer que cada um vê algo diferente quando mira uma organização. Assim sendo, os autores debitam, em parte, aos pesquisadores a responsabilidade por uma expressiva quantidade de tipos de análises.

Além do papel do pesquisador, outro fato que contribui para a vasta produção na ciência em geral e no campo dos estudos organizacionais em particular é a velocidade e quantidade de mudanças no contexto social. São mudanças na geopolítica, na tecnologia, na economia, nos costumes que atravessam as organizações exigindo um desenho diferenciado e mutante, ao mesmo tempo, que possibilita mais (ou menos) visibilidade em algumas características da organização diferentemente do período anterior.

Logo, constatamos uma longa trajetória, desde o mecanicismo, com metas e objetivos, até um conjunto de parâmetros analíticos que concebe como variável interpretativa as questões de sexualidade, as questões familiares, a morte, a infância etc. Entre estes extremos foram elaboradas diversas outras formas de conceber a organização e dada tamanha produção surgiram alguns trabalhos visando classificar as produções no campo dos estudos organizacionais, a exemplo dos trabalhos de Burrell e Morgan, 1979; Morgan, 1996 e Michael Reed, 1998.

Guerreiro Ramos (1989), diferentemente dos autores citados acima, não tem o objetivo principal de desenvolver uma tipologia dos estudos organizacionais, todavia ao fazer uma análise crítica da produção dos estudos organizacionais, ao longo do seu texto, é possível identificar uma determinada classificação. Durante sua argumentação podemos encontrar uma divisão do campo em três grupos: administração científica (Taylor), operacionalistas positivistas (Simon) e teoristas humanistas (Mayo).

Cada classificação responde a uma concepção de análise, porém todas elas demonstram a amplitude de teorias e metodologias utilizadas para melhor compreender as organizações. A classificação de Guerreiro Ramos propõe compreender as organizações com alguma particularidade. Ele adota um conjunto de variáveis que coloca os atributos relacionados com o ethos de uma sociedade centrada no mercado em segundo plano. Julga-os inadequados para fundamentar uma análise organizacional capaz de dar conta do conjunto de organizações da sociedade, bem como de compreender os principais dilemas que o mundo atual enfrenta.

Desta forma, a análise de Guerreiro Ramos, apesar de ter sido elaborada há algum tempo, ainda possui uma impressionante vitalidade e proximidade com o fenômeno da economia solidária, pois desloca o mercado da centralidade da análise. Vejamos, então, as particularidades da reflexão de Guerreiro Ramos.

4. A Crítica a Teoria das Organizações elaborada por Guerreiro Ramos

Alberto Guerreiro Ramos (1989) critica a existência do mercado na condição de única via de regulação e interação social. Aponta para a possibilidade e a necessidade de além do mercado outras formas de interação social a partir de uma lógica diferente do utilitarismo.

Assim, neste trabalho, Guerreiro Ramos tem o objetivo de contrapor um modelo de análise de sistemas sociais e de delineamento organizacional de múltiplos centros ao modelo atual centralizado no mercado, que dominou as empresas privadas e a administração pública no século XX. Ele defende a tese que uma teoria da organização centralizada no mercado não é aplicável a todos os tipos de relação/espaços que comporta a sociabilidade humana, mas apenas a um tipo especial de atividade. Para ele, a aplicação dos princípios mercantis a todas as formas de atividades estaria dificultando a atualização de possíveis novos sistemas sociais, necessários à superação de dilemas básicos de nossa sociedade. Vejamos que a partir desta análise as práticas de economia solidária adquirem uma relevância e podem ser interpretadas com categorias distintas das utilizadas na compreensão das organizações mercantis.

Ele argumenta que o modelo de alocação de mão-de-obra e de recursos, implícito na teoria dominante de organização, não leva em conta as exigências ecológicas e não se vincula, portanto, ao estágio contemporâneo das capacidades de produção.

Para Guerreiro Ramos a ciência social moderna foi articulada com o propósito de liberar o mercado das peias que, através da história da humanidade e até do advento da revolução comercial e industrial, o mantiveram dentro de limites definidos. Ele afirma que por mais de dois séculos, o restrito alcance teórico da moderna ciência social tem sido a causa de seu notável sucesso operacional e prático, no entanto, hoje em dia, a expansão do mercado atingiu um ponto de rendimentos decrescentes, em termos de bem-estar humano. Ou seja, as bases da ciência moderna, deliberadamente voltadas excessivamente para o mercado, não nos forneceriam as bases de entendimento da atual sociedade. Assim sendo, concluímos que esta ciência moderna que Guerreiro Ramos faz alusão não teria condições de entender fenômenos organizacionais que se distanciam da lógica mercantil, dentre esses fenômenos incluímos a Economia Solidária.

O construto teórico de Guerreiro Ramos é lastreado a partir das críticas da razão moderna e através desta crítica ele pretende chegar à nova ciência das organizações, pois, para ele, a razão é o conceito básico de qualquer ciência da sociedade e das organizações. Sendo assim, ele julga que os aportes feitos, até então, sobre razão[3], como insuficientes. Sejam quanto a encarar consistentemente a complexidade da razão (Max Weber, Karl Mannheim); ou por deixarem de prover a nova ciência das organizações e da sociedade da perícia operacional e analítica exigida pelas condições históricas do nosso tempo (Eric Voegelin) ou pelo cunho historicista que empregam a análise (Escola de Frankfurt).

Ou seja, Guerreiro Ramos faz uma tentativa de identificação da epistemologia inerente à ciência social estabelecida, da qual a atual teoria organizacional é um derivativo. Ele trabalha a diferenciação entre racionalidade instrumental (determinada por uma expectativa de resultados, ou “fins calculados”) e racionalidade substantiva (determinada “independentemente de suas expectativas de sucesso” e não caracteriza nenhuma ação humana interessada na “consecução de um resultado ulterior a ela”) realizada por Weber.

Seu principal argumento é que a ciência social estabelecida também se fundamenta numa racionalidade instrumental, particularmente característica do sistema de mercado. Para ele a teoria da organização, tal como é hoje conhecida, é menos convincente do que foi no passado e, mais ainda, torna-se pouco prática e inoperante, na medida em que continua a se apoiar em pressupostos ingênuos.

Para Guerreiro Ramos todos os autores revisitados por ele parecem concordar em que, na sociedade moderna, a racionalidade se transformou numa categoria sociomórfica, isto é, é interpretada como atributo dos processos históricos e sociais, e não como força ativa na psique humana. Todos eles reconhecem que o conceito de racionalidade é determinativo da abordagem dos assuntos pertinentes ao desenho social. No entanto, todos eles seriam menos do que suficientemente sistemáticos na apresentação de suas opiniões sobre tais assuntos.

A partir do trabalho de Guerreiro Ramos podemos “pinçar” contribuições à teoria organizacional no sentido de analisar o fenômeno da Economia Solidária: a discussão sobre racionalidade substantiva, a desnaturalização da racionalidade instrumental e apresentação da proposta de um modelo multidimensional de organização social. As questões sobre razão substantiva e desnaturalização da racionalidade instrumental fazem parte da mesma discussão e está implícita na parte crítica da análise. O tópico do modelo multidimensional diz respeito ao plano propositivo da obra. Analisemos com mais detalhes o aporte propositivo. 

O modelo multidimensional de análise social é concebido para contrapor o que ele chama de modelo unidimensional das ciências que enfatiza o mercado como único meio alocador de recursos e intermediários das relações produtivas e sociais. No modelo multidimensional, Guerreiro Ramos considera o mercado como um enclave social legítimo e necessário, contudo este é limitado e regulado. Para Guerreiro Ramos,

o ponto central desse modelo multidimensional é a noção de delimitação organizacional, que envolve: a) uma visão de sociedade como sendo construída de uma variedade de enclaves (dos quais o mercado é apenas um), onde o homem se empenha em tipos nitidamente diferentes, embora verdadeiramente integrativos, de atividades substantivas; b) um sistema de governo social capaz de formular e implementar as políticas e decisões distributivas requeridas para a promoção do tipo ótimo de transações entre tais enclaves sociais. (Guerreiro Ramos, 1989, p.140)

A multidimensionalidade proposta pelo autor está ancorada numa pluralidade de enclaves sociais no sentido que o indivíduo conseguisse alcançar sua realização pessoal nos múltiplos aspectos.

Assim, o modelo de análise e de planejamento social teria de levar em conta as questões de orientações individuais e de orientações comunitárias como pólos necessários. E, a partir dessa dupla condição, teria que considerar um ambiente com prescrições e outro com ausência de normas;

Quadro 1 - MODELO MULTIDIMENSIONAL DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Caixa de texto: Orientação ComunitáriaCaixa de texto: Orientação IndividualCaixa de texto: Orientação Comunitária,Caixa de texto: Orientação Individual 

 

 

 

 

 

 

 

 


Fonte: Guerreiro Ramos, 1989, p. 141.

O eixo vertical representa o nível das prescrições e das normas inerentes às atividades na sociedade, no extremo superior é assinalado o máximo de prescrições e na parte inferior do eixo estaria indicando a ausência de normas. O eixo horizontal indica a relação entre as ações comunitárias e as individuais.

A partir da interseção dos eixos, cada quadrante assume uma característica dual. Com tais características Guerreiro Ramos completa seu modelo alocando os enclaves em local específico. Os quadrantes da esquerda indicam as seguintes combinações: orientação comunitária/com prescrições; orientação comunitária/ausência de normas; os quadrantes da direita sinalizam: orientação individual/com prescrições e orientação individual/ausência de normas. Além destes quatro pólos, têm-se duas situações de meio termo (orientação comunitária/prescrição-ausência de norma e orientação individual/ prescrição-ausência de norma e orientação).

Cada configuração dual representa um enclave social com características determinadas; dessa forma, temos um enclave mercado (atividade realizada não individualmente e sujeita a prescrições); o enclave do motim (atividade realizada com muitos participantes com ausência de norma); o enclave isolado (atividade realizada individualmente e atendendo as prescrições); o enclave anomia[4] (ações isoladas sem atentar às normas). Nas situações de meio termo, temos o enclave da isonomia[5] e da fenonomia[6].

Até que ponto a Economia Solidária se ajusta na proposta de Guerreiro Ramos? Poderíamos considerá-la como uma isonomia? O fenômeno atual da Economia Solidária fica contemplado a partir das análises e prognósticos elaborados por Guerreiro Ramos?

5. Economia Solidária e a Análise de Guerreiro Ramos

Observa-se uma convergência entre as proposições de Guerreiro Ramos (modelo multidimensional) e a prática da economia solidária. Pois a discussão da economia solidária resgata a importância do debate sobre racionalidade no campo dos estudos organizacionais. O modelo multidimensional proposto por Guerreiro Ramos compreende e faz referência a uma sociedade composta por vários enclaves sociais.

Porém, diferentemente do que está implícito em algumas passagens de Guerreiro Ramos, esta grade analítica não deveria deixar de levar em conta que estamos diante da sociabilidade capitalista e que esta tem suas características bem definidas.

Considero que Guerreiro Ramos atribuiu um papel central a nova ciência social e por conseqüência aos cientistas no estabelecimento do desmascaramento da sociedade de mercado e o estabelecimento de outra sociabilidade. Ao fazer isso, será que não estaria incorrendo em erros semelhantes àqueles que ele condena dos opositores da sociedade de mercado? Será que não estaria sendo idealista e ingênuo, a ponto de considerar que o restabelecimento da racionalidade substantiva por si só conduziria os homens a uma nova sociedade? Pois, se a sociedade é conduzida por um determinado caminho graças à ação da racionalidade instrumental, que permeou os vários aspectos do cotidiano, como a ação individual pode se contrapor e vencer um arranjo tão totalizante?

Há que se registrar na análise de Guerreiro Ramos uma forte dose de idealismo que coloca os destinos da eficiência organizacional dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum. Mas, assim como Habermas (1995) sentencia para política, temos que admitir que tal proposição caminha para o estreitamento de uma compreensão ética. Assim sendo, tal questão apresenta-se como o calcanhar de Aquiles de tais interpretações.

Guerreiro Ramos critica a existência do mercado na condição de única via de regulação e interação social. Aponta para a possibilidade e a necessidade de, além do mercado, outras formas de interação social a partir de uma lógica diferente do utilitarismo. Contudo, considero a conceituação de mercado que ele emprega imprecisa. O mercado que opera com a lógica utilitarista e com racionalidade instrumental é o mercado capitalista; se quisermos operar com mercados, necessariamente, não precisa ser um mercado capitalista. Pois não devemos confundir e atribuir o mercado (fato muito comum) como algo exclusivo do capitalismo.

No entanto, o mercado capitalista tem características e formas de atuação e, mais importante, sua existência e funcionamento pressupõe e exige um tipo de relação social – multilateralização[7] das necessidades, unilateralização[8] dos produtores, lucro, salários, exploração e apropriação do trabalho alheio.

Diante disso, a proposta de pluralidade de enclaves sociais presente na concepção de Guerreiro Ramos precisa encarar este problema: não existe pluralidade econômica com a presença de um tipo de organização social capitalista, pois a organização capitalista de acumulação de mercado subordina outras formas organizativas. Com isso não estamos afirmando a impossibilidade da pluralidade de formas de relação humana, todavia afirmo isto ser impraticável (enquanto prática central) nas hostes do capitalismo. Nossa afirmação também não significa que só poderemos pensar e até buscar a pluralidade e outras categorias quando superarmos o capitalismo. Mas representa apontar que o que se quer com pluralidade implica no confronto e superação do capitalismo.

Para finalizar podemos afirmar que Guerreiro Ramos apresenta importantes contribuições no sentido de formatação de uma grade analítica para o fenômeno da Economia Solidária. No entanto, considero que estes aportes ainda são insuficientes para dar conta da riqueza e possibilidades de tal objeto. Neste sentido, teríamos de avançar para estruturação de um quadro analítico mais complexo. A princípio pode-se apontar um conjunto de autores e categorias que poderiam compor tal grade analítica: Karl Marx (interpretação crítica do capitalismo); Guerreiros Ramos (razão, desnaturalização da racionalidade instrumental e análise multidimensional da sociedade); Polanyi (economia plural) etc.

Porém, de imediato surge uma questão: há possibilidades do estabelecimento de diálogo entre autores e conceitos de matrizes epistemológicas tão distantes? As categorias tratadas por cada autor citado não seriam conflitantes, e, desse modo, não caminharíamos para o ecletismo?

Pois bem! Compreendemos que é a partir deste desafio e deste limite que se deve trabalhar objetivando estruturar uma grade analítica interpretativa da Economia Solidária.

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[1] Alberto Guerreiro Ramos, nasceu em 1915, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Faleceu em 1982, em Los Angeles, Estados Unidos, aos 67 anos. Em 1939, ganhou uma bolsa do governo do Estado da Bahia para cursar Ciências Sociais no Rio de Janeiro, na então Universidade do Brasil, onde se formou em Ciências Sociais em 1942 e em Direito em 1943, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.

Guerreiro Ramos tinha uma ampla e rica formação intelectual. No final da década de 1930 e início da de 1940, era fortemente influenciado pela intelectualidade francesa, sobretudo o pensamento católico do grupo francês L’ Espirit, chefiada por Emmanuel Monier e da revista L’Ordre Nouveau. Mas, o próprio Guerreiro Ramos considerava que foi Nicolau Berdiaeff a influência mais poderosa de sua vida (Oliveira, 1995). Desde 1944 passa a ser influenciado por Max Weber e a partir dele passou a se interessar pela teoria das organizações.

Trabalhou no Departamento Nacional da Criança, no DASP e na Casa Civil. Foi professor fundador da EBAP (Escola Brasileira de Administração Pública – FGV) e do Grupo Itatiaia e participou do ISEB. Em 1962 é eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro e é cassado em abril de 1964. Exilado, em 1966, começa a lecionar na School of Administration Public, University of Southern Califórnia até 1982, ano do seu falecimento. Sua obra é vasta e diversificada, versando sobre Teoria sociológica, Organização e Ação Pública e a Questão do negro (Brigagão, 1995). Sua última obra foi “A ciência das organizações”, publicada em 1980, principal referência neste artigo.

[2] Luis Razeto, professor e pesquisador do Programa de Economía del Trabajo (PET), de Chile, em 1982, com colaboração de Arno Klenner, Apolonia Ramirez y Roberto Urmeneta publicou a obra “Las Organizaciones Populares - Economía de la Solidaridad y Mercado Democrático", em três volumes. A pesquisa se dedica ao estudo da lógica de funcionamento daqueles setores que garantiam o seu sustento através de organizações distintas do padrão típico do mercado e da esfera do Estado, que surgiam no Chile a partir de 1974.

 

[3] Guerreiro Ramos discute o conceito de razão com os seguintes autores: Max Weber, Karl Mannheim, Eric Voegelin e autores da Escola de Frankfurt, principalmente Horkheimer e Habbermas. Ele considera que Weber foi o que deu a contribuição mais fecunda para a temática. Nesse sentido, neste texto trataremos de maneira mais exaustiva das assertivas de Guerreiro Ramos sobre Weber.

[4] Enclave caracterizado por doentes mentais, presos etc – indivíduos desprovidos de normas orientadoras, que não tem senso de relacionamento com outros.

[5] Contexto em que todos os membros são iguais. Seu objetivo é permitir a atualização de seus membros, independente de prescrições impostas. Os indivíduos neste campo estariam livremente associados e realizando atividades compensadoras entre si

[6] Sistema social de caráter esporádico ou mais ou menos estável, iniciado e dirigido por um indivíduo, ou um pequeno grupo, e que permite a seus membros o máximo de opção pessoal e um mínimo de subordinação a prescrições operacionais formais.

[7] Multilateralização das necessidades significa dizer que o atendimento das necessidades passa a ser suprida através da produção/trabalho alheio, diferentemente de épocas passadas que as comunidades eram quase que auto-suficiente.

[8] Unilateralização da produção é o resultado do processo de divisão do trabalho na sociedade. Quando o processo de divisão social do trabalho encontra-se bem adiantado, os indivíduos ficam aptos e concentrados na produção de apenas determinados produtos. Situação bem distinta de outras formações sociais, nas quais as pessoas envolviam-se na produção de quase todos os bens necessários para satisfação das suas necessidades.