CRESCER COOPERANDO

Trabalho na Sociedade Contemporânea

 

Cláudio Roberto de Jesus - Centro Universitário Newton Paiva - claudiobh@uol.com.br

Wanessa Pires Lott - Centro Universitário Newton Paiva - wlott@uai.com.br

 

Resumo

O presente projeto propõe um estudo do cooperativismo e da economia popular solidária em Minas Gerais. O ressurgimento e ampliação do cooperativismo tem colocado novas questões para o debate acadêmico atual. Por um lado, há um consenso de que o cooperativismo não é um movimento único e uniforme, existem avanços e retrocessos, instituições sérias e outras no mínimo suspeitas. De outro lado, diante dessa diversidade, ainda não se tem informações qualitativas suficientes para entender esse fenômeno como um movimento. Nesse sentido, o projeto proposto tem a pretensão de contribuir para tal debate.

Palavras-chave

Cooperativismo; economia popular solidária, Minas Gerais;

 

1. Introdução

As transformações recentes no mundo do trabalho decorrentes do atual processo de globalização têm colocado grandes desafios para aqueles que buscam compreender o momento. Especular torna-se uma tarefa fácil na medida em que o deslumbre e o romantismo tendem a sobrepujar o rigor científico e a disciplina metodológica. Até o momento a grande certeza que podemos ter em relação ao futuro é que dificilmente iremos reconstruir os laços de solidariedade dos “anos dourados”.

A bem da verdade, a obra de Robert Castel (1998) é extremamente importante na medida em que, ao fazer a crônica do salário, nos instiga a entender os conflitos que vivenciamos. Mais ainda, aponta os paradoxos que hoje vivenciamos de forma mais contundente, tanto no que diz respeito a relação indivíduo/sociedade, bem como do ponto de vista das instituições sociais. Cabe destacar de forma breve, o trato que Castel dá em relação à condição do assalariado no contexto de desenvolvimento do capitalismo. A transição do feudalismo para o capitalismo é essencialmente um processo de ruptura de tradições e instituições sociais, onde os laços morais são gradativamente suplantados por relações monetárias, traduzidas na essência pelo salário. “A burguesia desnudou de sua auréola toda ocupação até agora honrada e admirada com respeito reverente. Converteu o médio, o advogado, o padre, o poeta, o cientista em seus operários assalariados” (MARX & ENGELS 1996, p. 13).

Castel chama a atenção para o fato de que a condição de assalariado, até meados do século XIX, é algo indigno. Receber um salário, em última instância, significava uma derrota. O trabalhador assalariado era aquele, que por diversos motivos, não tinha os meios de produzir a sua sobrevivência e dessa forma não tinham outra opção, a não ser se submeterem às ordens de um patrão e à rotina extenuante da jornada de trabalho. O salário na verdade passa a ser a última e/ou única opção para aqueles que não desejavam a marginalidade.

Se ser assalariado era ser um derrotado, por que hoje a condição de assalariado nos remete a idéia de privilégio?

O entendimento de tal questão remonta ao desenvolvimento e consolidação da sociedade salarial durante o século XX, especialmente no período pós Segunda Grande Guerra. A expansão da condição de assalariado para a grande maioria da população, com o desenvolvimento de uma rede de proteção social e as conquistas dos sindicatos levou a formação da sociedade salarial, onde:

 

Cada um se compara a todos, mas também se distingue de todos; a escala social comporta uma graduação crescente em que os assalariados dependuram sua identidade, sublinhando a diferença em relação ao escalão inferior e aspirando ao estrato superior. A condição operária ocupa sempre, ou quase sempre, a base da escala (há os imigrantes, semi-operários, semibárbaros, e os miseráveis do quarto mundo). Mas que prossiga o crescimento, que o Estado continue a estender seus serviços e suas proteções e, quem merecer, poderá também “subir”: melhorias para todos, progresso social e bem-estar. A sociedade salarial parece arrebatada por um irresistível movimento de promoção: acumulação de bens e de riquezas, criação de novas posições e de oportunidades inéditas, ampliação dos direitos e das garantias, multiplicação das seguridades e das proteções.” (CASTEL, 1998, p. 417)

 

Assim sendo, nos países de capitalismo avançado o salário deixa de ser um meio de sobrevivência e torna-se um fator de construção de identidades. Mais que isso, o salário passa a ser uma das principais fontes de integração social. Tal situação, mesmo nos países ditos emergentes, promoveu uma maior solidariedade social na medida em que houve uma diminuição dos conflitos de classe.

No caso dos países desenvolvidos houve, via ação do Welfare State, uma significativa redução das desigualdades sociais, além disso, o salário colocado como um direito garante aos indivíduos a inserção no cotidiano do consumo. Outro ponto de destaque diz respeito à suposta estabilidade e renda garantida dada pelo contrato de trabalho por tempo indeterminado. Na verdade, cria-se um imaginário social pautado em relações duradouras e na medida do possível “imutáveis”. Aqueles que preferissem assumir os riscos e imponderáveis do mercado tinham abertas às oportunidades empreendedoras e o mercado informal. Assim sendo, a informalidade e o empreendedorismo se colocavam como uma opção, para aqueles que poderiam ganhar mais ou não se adequavam ao mercado formal.

Dessa forma, pode-se considerar que o salário ainda hoje é um dos fatores que garantem minimamente a coesão social, o grande problema é que essa relação não é mais possível para a maioria dos trabalhadores, além disso, os que ainda estão no mercado formal encontram-se numa situação de precarização intensa e cada vez mais ameaçados pelo crescente exército industrial de reserva. O que há de mais revelador na atual crise do mundo do trabalho é a fragilidade de tal construção social, uma vez que a lógica de funcionamento do capital é por excelência substituição de trabalho humano por maquinário e a manutenção de um contingente de desempregados a fim de rebaixar salários (Castells, 1999).

Uma outra possibilidade de leitura da sociedade salarial é, com efeito, de que a idéia de segurança e estabilidade, do ponto de vista ideológico, escamoteia uma situação de subserviência e acomodação da classe trabalhadora, seja porque há um favorecimento a incompetência – visão liberal, ou porque a classe trabalhadora deixou de lado os ideais revolucionários para se inserir na sociedade de consumo. O que chama a atenção é que, de fato, a sociedade salarial, como organização social e fonte de solidariedade, impõem limites aos indivíduos, principalmente porque não se altera o princípio fundamental capitalista da propriedade privada dos meios de produção.

Diante desse quadro, pode-se dizer que o furacão neo liberal que solapou as bases da sociedade salarial está longe de ter terminado. Mais que isso, o que se tem observado é uma intensificação da desigualdade social na maioria dos países, com conseqüente aumento da violência, drogatização, individualismo e dissolução dos laços de solidariedade (MARTINS, 1996) A questão a ser abordada nesse artigo, ainda que de forma preliminar, diz respeito ao(s) movimento(s) que de alguma forma tentam (re) construir laços de solidariedade a partir das relações de trabalho. Será dada ênfase em dois processos recentes observados em Minas Gerais, o grande crescimento de cooperativas na década de 1990 e a formação da rede de Economia Popular Solidária - EPS. Antes porém, será feita uma breve discussão a respeito de dois pressupostos teóricos que servem de fio condutor para análise dos casos citados.

 

2. Economia Solidária e Dádiva

A idéia da economia da dádiva tem como fundamento principal as idéias de Marcel Mauss, contidas no livro Ensaio sobre a dádiva, onde apresenta a idéia de que as trocas têm um papel fundamental nas sociedades tribais, uma vez que fundamental as relações de solidariedade a partir da obrigação de dar, receber e retribuir. Assim sendo:

 

De um ponto de vista sociológico, podemos dizer que toda dádiva tem por finalidade a criação, manutenção ou regeneração do laço social, pois se trata de um processo sem fim, onde a relação importa mais do que a coisa dada. A economia da dádiva é regida por três obrigações, que se realizam em momentos distintos: dar, receber, retribuir. Ela implica a existência de uma economia não mercantil, onde não há fixação de preços nem pagamento em dinheiro. Tampouco se trata de trocas imediatas de objetos ou serviços considerados pelas partes como equivalentes. A dádiva é, ao mesmo tempo, obrigatória e espontânea, gratuita e interessada, incondicional e condicional. (LECHAT & SCHIOCHET, 2003, P. 84) (grifo meu)

 

Tomada dessa forma, a dádiva não só estabelece laços de solidariedade, mas configura-se em um tipo específico de relação social onde a coesão é determinada por uma relação econômica, que é ao mesmo tempo política e social. Nesse caso, o processo de produção e distribuição de riquezas não se dissocia da vida cotidiana do indivíduo, muito menos se sobrepõe a ela, determinando suas ações tendo em vista um mercado. A finalidade de se produzir algo não é a coisa em si, e não é simplesmente uma questão de sobrevivência, mas tem um sentido social de existência.

O modo de produção capitalista não só estabelece uma produção que visa a criação de excedente, como também impõe uma distribuição desigual da riqueza produzida. Já o princípio da dádiva estabelece uma lógica de produção distinta uma vez que o produto final é visto como conseqüência. O sentido da vida social se faz no produzir e não em vender, trocar, acumular.

Como aponta Clastres:

 

Podemos admitir, a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma incapacidade, inerentes a esse tipo de sociedade e à sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil, da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nada mais. (...) E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais curto. (CLASTRES, 2003, p. 213/14) (grifo do autor).

 

É claro que os valores do mercado se generalizaram por todo o planeta, não propriamente por uma questão de aceitação, mas sim de forma imperativa e violenta. O autor chama a atenção para o fato de que a produção de excedente é algo que tem haver com os festejos, as relações políticas, os excessos permitidos.

É nesse sentido que as trocas têm um importante papel na vida da comunidade, pois é a partir delas que se fundamentam e se fortalecem os laços sociais, sejam os laços individuais, ou as relações entre os grupos. Dar, receber e retribuir estabelece também uma relação política de boa vizinhança com outros grupos, uma vez que tende a minimizar as rivalidades.

 

3. Capitalismo e cooperação

Normalmente tem-se um imaginário da sociedade capitalista como uma grande arena de competição, ações individuais, ações empreendedoras, reguladas pela “mão invisível” e a relação entre oferta e demanda. Tal imagem não é por completo errônea, mas em última instância distorce os fundamentos da produção capitalista. Antes de ser uma sociedade de competição e concorrência, o capitalismo é um sistema que se estrutura fundamentalmente na cooperação, esta entendida como “a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos.” (MARX, 1982, p. 374)

O que Marx quer chamar a atenção é para o fato de que os trabalhos individuais são pouco produtivos na medida em exacerbam os defeitos (e qualidades) e perde-se o ganho em escala. Para ele, a utilização de vários trabalhadores em uns determinados local traz uma grande vantagem no processo produtivo uma vez que os materiais concentrados, podem servir a várias pessoas. Por outro lado, se o dispêndio de força e capital para construir uma fábrica ou galpão é grande, maior seria se essa construção fosse fragmentada. Uma das grandes revoluções advindas do modo de produção capitalista está ligada ao ganho de escala, o que só é possível com a concentração de um grande número de trabalhadores, pois as diferenças individuais (mais ou menos produtivo) cria um “tempo de trabalho médio” (MARX, 1982)

É justamente o trabalho alienado que leva a uma idéia de um trabalhador individualizado, fragmentado no processo produtivo. Ainda hoje identificamos uma exaltação ao trabalho individual na empresa na medida em que a grande maioria toma como base de suas gratificações a meritocracia. Atualmente a teoria do capital humano teima em insistir que as habilidades pessoais é que vão fazer a diferença em termos de produtividade. Mesmo os “gurus” da administração que disseminam a idéia do trabalho em equipe, enfatizam de forma entusiasmada o papel do líder, do proativo e outros “tipos ideais” de trabalhadores, o que na verdade não passa de discurso recheado de chavões surrados. O que não é novidade é o fato de que:

 

Não se trata aqui da elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas da criação de uma força produtiva nova, a saber, a força coletiva. Pondo de lado a nova potencia que surge da fusão de muitas forças numa força comum, o simples contato social, na maioria dos trabalhos produtivos, provoca emulação entre os participantes, animando-os e estimulando-os, o que aumenta a capacidade de realização de cada um. (MARX, 1982, p. 374/5)

 

A idéia de cooperação assim colocada vai para além da simples divisão de tarefas:

 

Quando os trabalhadores se completam mutuamente fazendo a mesma tarefa ou tarefas da mesma espécie, temos a cooperação simples. Acentuamo-la porque ela desempenha importante papel mesmo no estágio mais desenvolvido da cooperação. Se o processo de trabalho é complicado, a simples existência de um certo número de cooperadores permite repartir as diferentes operações entre os diferentes trabalhadores, de modo a serem executados simultaneamente, encurtando-se assim o tempo de trabalho necessário para conclusão de todas as tarefas. (MARX, 1982, p. 376)

 

Diferentemente das sociedades tribais citadas no tópico anterior, onde a cooperação de muitos trabalhadores ocorria esporadicamente, seja na construção de uma nova habitação ou para a promoção de uma festa, no capitalismo esse esforço coletivo é contínuo, elevando assim, de forma nunca vista na história da humanidade, a produção de riquezas.

Ao que parece, no mundo globalizado de hoje, a cooperação entre atores situados nas mais diferentes partes do planeta tem contribuído decisivamente para o salto tecnológico e aumento da produtividade mundial. A medida em que os processo produtivos tornam-se mais complexos há um novo reordenamento na divisão internacional do trabalho. No entanto, cada vez mais tem-se uma menor necessidade do uso intenso do trabalho coletivo, o que não quer dizer que estejamos retomando a um modo de produção individualizado. O que ocorre é a produção de um enorme exército industrial de reserva, mais que isso, a criação de um contingente de supranumerários, termo empregado por Castel (1998) para designar aqueles que hoje estão excluídos do mercado de trabalho. Só que essa exclusão tem um caráter permanente, ou seja, mesmo que as economias nacionais voltem a crescer, vamos continuar a ter um número significativo de pessoas fora do mercado, em síntese, pessoas que não servem nem para serem exploradas pelo capital.

 

4. A Economia Popular Solidária em Minas Gerais

Antes de tudo é preciso deixar claro o significado de Economia Popular Solidária, uma vez que o conceito não diz respeito simplesmente a uma forma de produção popular, ou economia de subsistência. Mais que isso, o conceito abrange uma gama de empreendimentos que tem como base a idéia de solidariedade, ou seja, formas de produção que promovam a emancipação econômica e resgate da dignidade com promoção da cidadania. Dessa forma, os empreendimentos ligados à EPS são desde cooperativas a organizações familiares, não é a forma ou tamanho que lhes conferem uma identidade, mas sim os ideais que norteiam as ações dos indivíduos.

A EPS no Brasil, de uma forma geral, ainda é uma experiência um tanto quanto insipiente, além disso, há uma grande dificuldade de se saber, através de dados confiáveis, a caracterização dos empreendimentos. Apesar do esforço Secretaria Nacional de Economia Solidária em fazer um amplo mapeamento, ainda não se sabe ao certo qual a dimensão e alcance dos empreendimentos ligados a EPS. No caso de Belo Horizonte, foi feita uma pesquisa de campo[1], no início de dezembro de 2004, durante a 2ª Feira Mineira de Economia Solidária, que tinha a pretensão de fazer uma breve caracterização dos empreendimentos participantes. Sendo assim, os dados não revelam um perfil fidedigno da EPS na Região Metropolitana de Belo Horizonte – RMBH, mas sugerem questões para o debate.

Um primeiro ponto a se destacar diz respeito a forma de organização dos empreendimentos. A grande maioria são grupos informais (71%), ou seja, empreendimentos com pequeno número de participantes e com vínculos baseados em grande parte em laços de confiança e reciprocidade. Do ponto de vista jurídico são organizações frágeis e têm grande dificuldade de acesso a apoio institucional para o desenvolvimento e sobrevivência do grupo. Ainda compõe a amostra cooperativas (12%), seguidas das associações (10%) e outros (7%).

Outro ponto que chama a atenção é que a maioria dos empreendimentos, independente da sua forma de organização, é bem recente, ou seja, do ano 2000 em diante houve um grande crescimento tanto dos grupos informais como das cooperativas e associações. É claro que as ações governamentais de apoio e incentivo a EPS tem tido um papel importante para o crescimento do número de empreendimentos, mas não se pode esquecer que o número de cooperativas, como será exposto posteriormente, e trabalhadores do mercado informal também tem sofrido um considerável aumento a partir da década de 1990.

O que se pôde observar durante a Feira é que a grande maioria dos produtos em exposição eram pouco sofisticados em termos do uso de tecnologia para a sua produção. Uma boa parte da produção é feita de forma artesanal, com destaque para os artigos de vestuários (44%), bijuterias (31%), cama, mesa e banho (18%), bolsas (13%), dentre outros. Os produtos agrícolas apareceram com menor freqüência tendo em vista o perfil da Feira, sendo assim, uma gama de empreendimentos representativos da EPS ficou de fora da pesquisa.

O tipo de produto produzido e a sua qualidade tem reflexos diretos sobre os rendimentos e forma de comercialização os produtos. As feiras regulares ou eventuais (64%) têm um peso considerável em termos de comercialização, assim como a venda em casa (38%) e de “porta em porta” (35%). Uma pequena minoria tem loja própria ou vende diretamente seus produtos a um comprador fixo regular.

Por fim, ao analisar o nível de renda gerado pelo empreendimento (33% menos de um salário mínimo, 25% perto de um, 14% cerca de dois e apenas 7% acima de três; 21% não respondeu ou não sabia) é assustador o fato de que a grande maioria oferece baixas remunerações. Esses dados, ainda que exploratórios, permite inferir que os grupos, no geral, têm uma produção voltada para a subsistência. É claro que os dados são limitados na medida em que desconsideram as práticas e os valores que permeiam as relações dentro dos grupos.

 

5. O boom do cooperativismo mineiro

A análise acerca do crescimento do número de cooperativas em Minas Gerais teve como base os dados da Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB e da Organização das Cooperativas do Estado de Minas Gerais  - OCEMG. Tal escolha se fez tendo em vista a precariedade das informações obtidas na Junta Comercial, sendo assim, na OCEMG foi possível coletar dados mais precisos (ainda que não totalmente confiáveis), pois é uma entidade especializada no ramo cooperativista. A OCEMG classifica as cooperativas de acordo com os seus estatutos e ramos de atividade, apesar de ser uma classificação precária, possibilita um trabalho mais objetivo dos dados. As cooperativas se dividem da seguinte maneira: Agropecuário; Consumo; Crédito; Educacional; Especial; Habitacional; Mineral; Produção; Trabalho; Turismo e lazer. Quando porém se observa com maior cautela as listagens por ramo de atividade da OCEMG, é possível perceber que a classificação apresenta algumas inconsistências uma vez que não há um rigor conceitual e metodológico para tal classificação. No entanto, tais problemas não foram relevantes no contexto da pesquisa, uma vez que se trata de um trabalho exploratório.

O que chama a atenção em um primeiro momento é que as cooperativas que têm destaque em termos de crescimento são ligadas ao ramo de trabalho e saúde. Sabe-se que as cooperativas do ramo da saúde em geral representam grupos sociais bem estruturados em termos de qualificação, o que teoricamente confere a esses indivíduos uma posição privilegiada no mercado. Por outro lado, as cooperativas de trabalho se inserem em uma diversidade de atividades, onde as qualificações e a organização interna, nem sempre correspondem a ganhos no mercado. Diversos autores têm chamado a atenção para o grave problema das “coopergatos”, cooperativas fraudulentas, que na verdade funcionam como fachada, de forma a burlar as leis trabalhistas. As principais denúncias dessa prática relaciona-se com cooperativas de trabalho, o que põe os dados acima sob suspeita.

No caso de Minas Gerais os números do cooperativismo são expressivos, ainda assim as cooperativas estão longe de representar uma força expressiva na economia mineira e brasileira.

 

 

 

 

Números do Cooperativismo Mineiro

 

Número Total de Cooperativas

770

Número Total de Funcionários

22.718

Número Total de Associados

697.147

 

Ramo de Atividade

N° de Cooperativas

N° de Associados

N° de Funcionários

Agropecuário

175

135.630

14.366

Consumo

21

105.360

1.190

Crédito

254

290.204

3.111

Educacional

37

10.908

556

Especial

0

0

0

Habitacional

7

2.352

7

Infra - Estrutura

2

4.227

14

Mineral

1

397

1

Produção

3

334

17

Saúde

123

104.981

2.842

Trabalho

99

32.102

172

Transporte

47

10.630

442

Turismo e Lazer

1

22

0

TOTAL

770

697.147

22.718

Fonte: Gerência Técnica / OCEMG - Posição em 06 de Dezembro de 2004.

 

Destaca-se na tabela acima o grande número de cooperativas no setor agropecuário e de crédito, na verdade são ramos que têm uma tradição nas formas cooperativas, sendo as cooperativas de crédito inseridas inclusive em uma outra relação jurídica com o Estado. Para fins da pesquisa de campo foram escolhidas duas cooperativas de trabalho e duas no ramo da produção. Tal escolha se justifica pelo fato de que o ramo trabalho, como dito anteriormente, tem sido alvo de constantes denúncias. Por outro lado, as cooperativas de produção têm se destacado justamente por aparentarem ser uma real alternativa para os trabalhadores.

 

6. Da coesão teórica à fragmentação empírica

Em primeiro lugar, é preciso pensar o cooperativismo enquanto uma proposta de uma nova relação econômica e social e o que efetivamente ocorre na prática. Para tanto, a investigação empírica baseou-se naquilo que seria a diferença entre uma empresa de heterogestão e de autogestão.

A partir da pesquisa de campo, pode-se observar que, existem cooperativas em Minas Gerais como a Cooperativa de Produção Mineira de Equipamentos Ferroviários Ltda – COOMEFER - em que é possível visualizar alguns princípios da autogestão, como por exemplo, democracia interna, gestão aberta e flexível, forte solidariedade entre os cooperados, clima de confiança e coesão. A cooperativa é formada por 622 cooperados que trabalham alternativamente na produção (chão da fábrica). Os que trabalham na administração são funcionários, o que em princípio denota uma certa inversão do status tradicional da empresa capitalista. Os comitês têm um funcionamento efetivo, com atuação constante no sentido de conscientização e resolução de problemas internos.

Por outro lado, a Cooperativa de Produção de Artigos Téxteis –COOPETEX – possui um cotidiano e uma estrutura interna ainda muito semelhante à antiga fábrica. Há 180 cooperados, sendo que uma boa parte é de ex funcionários da antiga fábrica, havendo uma nítida separação entre aqueles que trabalham na produção e na administração. É possível perceber, através de relatos do cotidiano que há um certo distanciamento entre trabalhadores de colarinho branco versus produção, relações de desconfiança e uma participação democrática frágil.

Na Cooperativa dos Profissionais de Serviços Múltiplos - COOPSERVIÇO, existem 3229 cooperados, sendo que apenas 30% estavam em atividade, e seu objetivo é oferecer mão-de-obra ao mercado. Apesar de manter uma relação dúbia com relação às empresas que presta serviços, foi possível perceber internamente um certo grau de coesão entre os cooperados. Há uma participação significativa dos cooperados nas assembléias, são oferecidos cursos sobre cooperativismos para os novatos, bem como eventos que objetivam a integração dos membros. A COOPSERVIÇO não deixa de ser um centro de recrutamento de mão de obra, mas o faz de modo mais coeso, percebe-se isso na atenção destinada aos inativos que mesmo ociosos gozam dos mesmos direitos dos ativos, ou seja, seguro de acidentes pessoais, convênios e remuneração a gestantes. A única condição para gozar destes benefícios é de pertencer à cooperativa a mais de um ano.

Já a Cooperativa Nacional de Profissionais Autônomos Ltda - CNAP, compõe-se de 1.314 cooperados e 9 funcionários. Seu objetivo é oferecer mão-de-obra ao mercado dentro de vários segmentos, desde faxineiros a engenheiros. O cadastro da CNAP se divide entre ativos e inativos, os ativos estão atualmente trabalhando e devem contribuir com 3,5% a 6% do total do pro labore para a cooperativa. A CNAP é uma cooperativa multifuncional que procura no mercado a inserção de seus cooperados e já está funcionando a mais de oito anos. A escolha dos cooperados para a efetuação de determinado serviço gira em torno de dois critérios, o primeiro é puramente técnico e o segundo é se dá por rodízio. Os inativos da CNAP não contribuem para a cooperativa e provavelmente a maioria desligaram-se da mesma porque encontram o “resguardo” do trabalho formal.

 

7. Considerações Finais

Em primeiro lugar, tanto o cooperativismo quanto a tentativa de se estabelecer uma “outra economia” não são novidades. Historicamente, os contextos de crise do capitalismo são acompanhados por movimentos que ora buscam remediar a situação, ora procuram apresentar alternativas ao modelo econômico vigente. Mas é bom lembrar que o que vivenciamos hoje não é simplesmente uma crise do capital, mas sim uma mudança estrutural que tem conformado uma nova organização política e social a partir da desestruturação da sociedade salarial.

A EPS tenta estabelecer uma alternativa ao sistema capitalista com base em uma nova organização da produção que implica em um redirecionamento nas ações humanas, em última instância, em um novo humanismo. O princípio da dádiva aparece como o balizador das relações que se estabelecem entre os indivíduos. Se por um lado é possível vislumbrar tal postura em determinados empreendimentos, não se pode afirmar, porém, que é algo que se tem generalizado. Os próprios empreendimentos ligados a EPS, a princípio, se mostram um tanto quanto frágeis diante dos desafios colocados no mundo contemporâneo.

Por outro lado, as cooperativas estudadas traduzem em grande parte o universo do cooperativismo mineiro, ou seja, não é possível propriamente falar que o boom de crescimento das cooperativas se traduz em um movimento cooperativista. É claro que não se trata de uma generalização à partir do estudo de caso, mas antes de mais nada, trata-se de constatar que o tema carece de uma discussão mais apurada, bem como há uma necessidade de um maior conhecimento qualitativo das cooperativas, sua lógica de funcionamento, relação com o mercado e com o Estado.

No caso das cooperativas estudadas existe um ponto comum entre as quatro, o surgimento delas está intrinsecamente relacionado com a atual crise do trabalho. As cooperativas de produção em questão foram criadas a partir do momento em que as antigas empresas entraram em processo de falência, já as cooperativas de trabalho representam de alguma forma uma resposta imediata à crescente diminuição do emprego padrão, tendendo a ser muito mais um meio de subsistência do que propriamente uma ação transformadora. Aqui há uma questão de fundamental importância, será que as cooperativas, na sua grande maioria, tendem a se posicionarem de forma passiva diante do mercado? Mais ainda, será que a instituição mercado de trabalho prevalece sobre os supostos ideais de sociabilidade que permeiam o discurso cooperativista?

Tais questionamentos não podem minimamente ser respondidos através dos casos aqui brevemente apresentados, no entanto, podemos perceber que o fio condutor que poderá nos levar a observações mais aprofundadas sobre tal objeto tem haver em primeiro lugar com a lógica interna de funcionamento das cooperativas, em segundo, com a sua relação com o mercado e, em terceiro lugar, com a relação entre as próprias cooperativas. Por fim, cabe ainda investigar a relação das cooperativas com a comunidade local, o impacto que tal empreendimento traz para a comunidade local.

 

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www.ocemg.org.br acesso em 16 fevereiro de 2005.



[1] Para a pesquisa foram consideradas 84 entrevistas com questionários fechados, aplicados por alunos voluntários da Newton Paiva. O levantamento de dados contou com o inestimável suporte técnico e operacional do Instituto Marista, especialmente na figura de Ana Carla, Shirley e Geraldo, dentre outros.